A trajetória do matemático e economista americano Paul Milgrom, de 76 anos, até renderia um filme de Hollywood. Ele teve a proeza de transformar sua expertise acadêmica na teoria dos jogos, desenvolvida nos anos 1970 e 1980, em um dos trunfos da era digital, presente no dia a dia mundo afora sem que ninguém se dê conta.

Coube ao catedrático da Universidade Stanford viabilizar o uso de algoritmos numa ampla gama de probabilidades na economia, em especial nos leilões digitais —  área em que protagonizou uma revolução, cuja aplicação se estendeu das licitações governamentais à formação de preços do mercado financeiro, abrindo caminho para a viabilização do streaming nos smartphones, redução da fila de transplante de rins ao cálculo da espera dos aplicativos de transporte.

Discreto, Milgrom não virou tema de filme, mas, seu trabalho recebeu (juntamente com o colega Robert Wilson, de 87 anos) o prêmio Nobel de Economia em 2020. Na última semana, o economista acrescentou mais um feito à sua biografia: sua empresa, Auctionomics, levou, em conjunto com a FCC (agência reguladora do setor de comunicações dos Estados Unidos), o Emmy, prêmio considerado o Oscar da televisão, na categoria de Tecnologia e Engenharia. Graças ao economista.

A homenagem é resultado de um software desenvolvido inicialmente por Milgrom e Wilson e adaptado pela Auctionomics num leilão digital histórico, ocorrido em 2016, que permitiu realocar frequências de rádio de transmissão de TV para usos de banda larga sem fio.

O leilão foi extremamente complexo, mas a estratégia que o permeou era simples: em vez de o governo retomar na marra o domínio do espectro eletromagnético e arriscar anos de processos judiciais, realizou uma das ideias geniais desenvolvidas pelo economista, que ficou conhecida como "leilão de oferta simultânea".

Na prática, o certame ofereceu aos proprietários do espectro vantagens financeiras para vender seu direito de uso.

Com isso, os participantes fizeram ofertas em múltiplos itens simultaneamente, o que é particularmente útil em vendas de espectro, onde diferentes faixas de frequência estão disponíveis.

Esses proprietários somavam cerca de 50 emissoras diferentes, operando mais de mil estações de TV locais, que estavam ocupando uma parte do espectro eletromagnético que seria muito mais valiosa nas mãos das operadoras telecom.

Eles acabaram vendendo seu espectro por US$ 10 bilhões no leilão. Enquanto isso, as operadoras sem fio compraram o espectro por US$ 19 bilhões. De quebra, o Tesouro dos Estados Unidos abocanhou boa parte da diferença — mais de US$ 7 bilhões.

Como resultado, não só a indústria da TV se viu abastecida com bilhões de dólares inesperados, como a indústria sem fio também conseguiu, pela primeira vez, transmitir vídeo para milhões de celulares simultaneamente. O Emmy, portanto, não passou de um agradecimento indireto a Milgrom por parte de Hollywood.

A referência ao leilão de 2016 da FCC foi citada pela academia sueca ao anunciar o Nobel de Economia a Milgrom e Wilson, quatro anos depois, “por usarem seus conhecimentos para projetar novos formatos de leilão para bens e serviços que são difíceis de vender de forma tradicional, como frequências de rádio”.

A formulação básica da teoria de leilões — desenvolvida principalmente por Milgrom — já havia sido aplicada em 1994, quando a FCC vendeu frequências de rádio a operadores de telecomunicações. Desde então, muitos outros países copiaram o modelo.

Design de mercado

Com quase 100 artigos científicos publicados, Milgrom foi um dos principais atores da grande mudança ocorrida na teoria econômica no final do século passado, introduzindo novas ferramentas à teoria dos jogos não cooperativos, que estuda estratégias onde jogadores escolhem diferentes ações na tentativa de melhorar seu retorno.

O grande avanço de Milgrom nesse campo se deu na consolidação de sua teoria geral dos leilões — o melhor exemplo da complexidade estatística de probabilidades envolvida numa negociação comercial, principalmente no ambiente online.

Junto com Robert Wilson (à esquerda), Milgrom ganhou o Nobel de Economia de 2020 (Foto: Reprodução Instagram @stanford)

A teoria econômica tradicional mostra que os preços sozinhos ditam uma alocação eficiente de recursos, sem necessidade de uma organização maior. No entanto, Milgrom comprovou que, em muitos mercados, os preços por si só não têm capacidade para gerar resultados eficientes e viáveis.

Ele propôs considerar fatores como o valor de sinergia entre itens, onde o valor de um conjunto de itens pode ser maior do que a soma dos valores individuais.

Os leilões são um exemplo. Eles ajudam a vender uma variedade de produtos, incluindo diamantes, minerais e publicidade online. Também podem assumir várias características: os objetos podem ter um valor comum compartilhado para todos os licitantes (incluindo commodities, como petróleo) ou valores privados que variam entre os licitantes (como peças de arte).

O acadêmico conseguiu colocar na mesma equação valores comuns e privados de um leilão, mostrando que um certame gera preços mais altos quando os compradores obtêm informações sobre os lances planejados por outros licitantes, durante o processo de licitação —  o que gera resultados maiores, em especial em leilões governamentais.

O impacto dessa teoria aplicada a algoritmos consolidou o chamado design de mercado - que engloba os leilões, mas ajudou a moldar desde a indústria de publicidade online à operacionalidade de aplicativos, como de namoro.

O acadêmico também contribuiu em um trabalho relacionado aos leilões utilizando a teoria da microestrutura de mercado, que analisa detalhadamente os mecanismos de formação de preços nos mercados financeiros.

Milgrom, por sinal, criou a Auctionomics em 2008, durante a crise financeira, para encontrar uma maneira de precificar e vender os ativos tóxicos nos balanços dos bancos. Depois, passou a desenvolver leilões para ativos como diamantes brutos, leite em pó da Nova Zelândia e direitos de pesca chilenos.

A maior parte do trabalho da Auctionomics é confidencial e sua equipe é relativamente pequena, contando com professores de economia e ciência da computação, que trabalham meio período em projetos específicos.

A empresa costuma manter duas equipes diferentes escrevendo e executando seu software em um determinado projeto. A ideia é que, se elas não chegam ao mesmo resultado, uma delas deve ter cometido um erro.

Processo do Google

Milgrom e sua empresa também costumam dar atenção a projetos sociais. Em 2020, utilizando as premissas da teoria dos leilões, Milgrom estimulou pesquisadores de Stanford a desenvolver um algoritmo que reduziu a lista de espera de transplantes de rim nos Estados Unidos.

Mais recentemente, dedicou atenção à escassez de água no oeste americano, que, segundo ele, é fruto de uma falha de legislação que pode ser melhorada utilizando a teoria dos leilões.

Isso porque alguns agricultores precisam usar a água para manter os direitos sobre ela, mesmo sem precisar — então eles desperdiçam o recurso apenas para manter direitos futuros. Milgrom e a Auctionomics estão se debruçando em uma solução para o problema.

O acadêmico obteve destaque recente ao participar no processo antitruste do governo americano contra o Google. Quase toda a receita anual de US$ 328 bilhões da gigante de tecnologia é gerada em leilões, então o design de mercado (e o possível abuso dele) está no cerne dos negócios da empresa.

Chamado a depor diante uma juíza distrital, Milgrom desmontou as afirmações do governo de que a empresa havia abusado de seu poder, argumentando essencialmente que a promotoria havia interpretado mal as mudanças que o Google fez em seus leilões de publicidade, ao longo de muitos anos.

Em vez de anticompetitivos, argumentou Milgrom, eles eram as escolhas certas na época, dada a tecnologia atual, para evitar o abuso do sistema.

A defesa do Google pode até ter levantado suspeitas, mas o fato é que Milgrom sempre foi obcecado em cercar todas as possibilidades de fraudes em leilões.

Em um dos seus primeiros casos, a Auctionomics ajudou a descobrir conluio em leilões sobre licenças de caça-níqueis na Austrália.

"O jogo é sempre maior do que você imagina", costuma repetir Milgrom — o que significa que as empresas e os governos que criam leilões precisam estar muito cientes de que podem ser manipulados.