As denúncias de Maureen Kearney sacudiram a indústria nuclear francesa em 2012. A sindicalista nascida na Irlanda e radicada em Paris delatou um contrato secreto prestes a ser assinado entre franceses e chineses, envolvendo transferência de tecnologia para a fabricação de um reator nuclear.
Por mais que França e China já fossem parceiros nucleares, Kearney alertou que o acordo prometia aos chineses segredos industriais franceses. E o arranjo entre a Électricité de France (EDF) e a China Guangdong Nuclear Power Company (CGNPC) provavelmente significaria milhares de demissões na França.
Toda a trajetória de Kearney, incluindo intimidação, agressão física e acusação de “inventar” o próprio ataque, é resgatada em “A Sindicalista”. Quem encarna a protagonista é um dos ícones do cinema francês e europeu, a parisiente Isabelle Huppert, vencedora, entre outros troféus, do prêmio de melhor atriz em Cannes por “A Professora de Piano” (2001).
Em cartaz nos cinemas do Brasil a partir de 29 de junho, “A Sindicalista” revive o episódio verídico com uma roupagem de thriller nas telas. Até porque alguns detalhes parecem mesmo extraídos da ficção – como a letra “A” que foi escrita com uma faca na sua barriga. O “A” diz respeito à Areva, o antigo grupo estatal francês de energia nuclear que ela representava no Comitê de Empresa Europeu, com mais de 45 mil funcionários.
Kearney considerava que o acordo entre a França e a China colocaria os empregos da Areva em risco, dada a sensibilidade das informações, o que acabaria ajudando os chineses a se tornarem concorrentes da companhia. Mas tudo o que a sindicalista ouvia era que os acordos sobre propriedade intelectual seriam feitos posteriormente.
Como Kearney só encontrava obstáculos conforme brigava por transparência no acordo, ela passou a alertar políticos e a mídia. A partir daí, vieram as primeiras ameaças anônimas por telefone, o que deixava claro que os mais poderosos não tinham interesse que o negócio fosse questionado.
A intimidação culminou com um ataque sofrido por Kearney em sua casa, no subúrbio de Paris. Pela manhã, ela foi encontrada pela faxineira, amarrada a uma cadeira, com o cabo de uma faca inserido em sua vagina e com a letra “A” cravada na barriga.
Ao procurar a polícia, sua situação piorou, trazendo ainda mais consequências pelo fato de se tratar de uma delatora. Aos poucos, a investigação tomou um rumo diferente, fazendo-a passar de vítima à suspeita, acusada de ter encenado o crime contra si mesma. Depoimentos de executivos do setor nuclear a descrevendo como “louca” certamente não ajudaram.
O barulho que a sindicalista fez, no entanto, surtiu efeito. Suas denúncias resultaram em uma investigação conduzida pela L’Inspection Générale des Finances (IGF) sobre o acordo entre a EDF e a CGNPC. E isso obrigou o contrato, um documento de 23 páginas, a ter a transparência que a sindicalista pedia desde o início. Até porque a imprensa passou a cobrir o caso, com mais atenção, depois que Kearney abriu a boca.
“A história da sindicalista é pouco conhecida, até mesmo na França. Tudo foi encoberto para não se transformar em um escândalo estadual”, disse o diretor do filme, o francês Jean-Paul Salomé, no último Festival de Veneza, que teve cobertura do NeoFeed.
O cineasta só tomou conhecimento da trajetória de Kearney no Twitter, assim que a escritora francesa Caroline Michel-Aguirre postou sobre o lançamento de seu livro, em 2019. Repórter investigativa da revista “L'Obs”, ela tinha acabado de publicar “La Syndicaliste”, detalhando a jornada da mulher que ingressou na Areva dando aulas de inglês para engenheiros.
“É a história de uma mulher em um ambiente dominado por homens. E uma mulher do povo, que não foi educada nas melhores escolas”, afirmou Salomé, lembrando que o drama de Kearney se arrastou até 2018, quando ela foi finalmente inocentada.
“A Sindicalista” é de um nicho que perdeu espaço nas últimas décadas no cinema francês, o de filme-denúncia. Daí a importância, segundo o diretor, de manter os nomes, as datas e as circunstâncias na trama, com a maior fidelidade possível.
“O público não pode se esquecer de que tudo isso realmente aconteceu no cenário político que cobre o final da gestão do presidente Nicolas Sarkozy e atravessa todo o governo de François Hollande”, disse Salomé. “Por mais que a história da sindicalista pareça coisa de cinema.”