Ao receber Nahum Goldmann, membro da direção da Organização Sionista Mundial, em visita ao Palazzo Venezia, em novembro de 1934, o ditador italiano Benito Mussolini tentou tranquilizá-lo: “Conheço Hitler. É um imbecil e um malandro, um malandro fanático... Quando não houver mais nenhum rastro dele, os judeus serão sempre um grande povo”.
Prosseguiu o Duce: “Vocês e nós somos uma potência histórica. Quanto a Hitler, ele não passa de uma farsa destinada a durar alguns anos. Não tenham medo dele e digam aos seus judeus que não é preciso ter medo... Todos nós sobreviveremos a ele”. Não aconteceu bem assim, como se sabe.
Mussolini teve um papel importante na tragédia humana que marcaria a Segunda Guerra Mundial. Nos cinco anos seguintes a essa conversa, ele e Hitler viveram uma relação de amor e ódio, com direito a pérfidas traições e à submissão vergonhosa e traiçoeira do primeiro pelo segundo.
Essa história tão importante até hoje para a humanidade é o tema central de M, Os últimos dias da Europa; o terceiro volume da celebrada quadrilogia do ambicioso projeto literário de Antonio Scurati, professor de literatura comparada e escrita criativa da Universidade de Comunicação e Línguas, de Milão.
Seu lançamento no Brasil, pela Editora Intrínseca, coincide com duas efemérides de 2025: os 80 anos da morte do ditador italiano, em 28 de abril, e os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, em 2 de setembro.
Fique Por Dentro
A reação aos livros de Scurati na Itália mostra como o passado fascista do país continua vivo.
E o motivo é simples: a ideologia simbolizada por Mussolini continua a renascer a cada geração, com políticos considerados de extrema direita. De tempos em tempos, o ditador ressurge em filmes, peças de teatro, biografias ou romances. E sempre vem acompanhado de polêmicas.
Uma das mais intensas é de abril de 2024. O escritor foi convidado para participar do programa Chesarà..., da TV pública Rai 3, quando leria um monólogo de sua autoria em comemoração ao aniversário da Libertação da Itália.
Em sua fala, ele alertava os telespectadores sobre o avanço da extrema-direita no país e o legado insurgente do fascismo. A cutucada tinha endereço certo: a primeira-ministra Giorgia Meloni, presidente do Partido Conservador e Reformista Europeu, e seu partido, o Fratelli d'Italia — ambos com raízes em movimentos neofascistas.
Gravada previamente, a participação de Scurati não foi levada ao ar. Ele acusou Meloni de censura e de tratá-lo como um "cão tinhoso". Existe no país, segundo ele, um esforço para reabilitar aspectos da herança fascista, mediante ações do governo que enfraquecem a memória histórica da ditadura, ao dimensionar seus supostos aspectos positivos.
O modo como mostra em seus livros a trajetória de Mussolini como agitador político e a expressão máxima do fascismo fez das obras de Scurati uma advertência quanto ao futuro. Vencedor do com o prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana, o primeiro volume, M, O filho do século, leva o leitor ao período de 1919 a 1925, quando se dá a ascensão de Mussolini e do fascismo.
O segundo, M, O homem da providência, vai de 1925 a 1932, e narra em minúcias a consolidação da ditadura.
No novo tomo, a história se passa no triênio 1938 a 1940, com destaque para a aproximação de Mussolini com Adolf Hitler e a entrada da Itália na guerra. Em quase 400 páginas, o premiado autor de 56 anos mostra como o Duce, “escravo de seus delírios de grandeza”, curvou-se à barbárie nazista e assumiu seu lugar secundário na história como figura subalterna aos interesses do nazista.
Uma das passagens, em 11 de maio de 1938, mostra uma visita de Hitler à Itália, depois da anexação da Áustria, e teve o propósito bem-sucedido de solidificar as relações entre os dois regimes totalitários.
Se no passado o Duce tinha chegado a descrever o líder nazista como um “maníaco sexual”, sua opinião sobre o Führer passou a se suavizar a cada encontro nos anos que antecederam ao início da guerra. E, ao acompanhar seus planos de expansão pela Europa, concluiu que teria mais a ganhar se aliando aos ideais despóticos de Hitler do que se afastando deles.
Scurati conta que, no entanto, uma importante questão ideológica ainda distanciava os dois ditadores: o aspecto racial. A princípio, apaziguador em relação à situação dos judeus, como se viu no episódio com Nahum Goldmann, o tom de Mussolini mudou radicalmente depois de uma conversa com o austríaco. No auge do furor fascista, a perseguição do governo italiano contra os judeus foi institucionalizada, no auge do furor fascista.
Além de ter agradado ao Partido Nazista, narra o autor, a aprovação da severa legislação antissemita de Mussolini serviu para aumentar a pressão por uma aliança entre os dois países que se estendesse ao campo militar, o que provocou um certo incômodo no líder italiano.
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Mas, ele estava comprometido demais com a ideia de um “Eixo Roma-Berlim” e não havia como voltar atrás. Quando a guerra começou, o contraditório ditador pediu uma vultuosa quantia para apoiar Hitler, que ficou furioso.
A circulação dessa informação foi desastrosa para sua imagem em todo o continente. Governantes vizinhos passaram a descrevê-lo como um sujeito traiçoeiro e covarde. Até que, após as primeiras vitórias do Terceiro Reich, contrariando tudo e todos, arrastou a Itália para uma guerra para a qual o país não estava preparado.
O desfecho dessa história está previsto chegar ao Brasil em 2026, com o lançamento do quarto volume da quadrilogia de Scurati. M, A hora do destino traz a campanha italiana na guerra, a partir de abril de 1940, e a derrocada de Mussolini — preso, cinco anos depois, ao tentar fugir do país, morreu fuzilado em praça pública.