Durante muito tempo, a indústria de luxo foi resistente em aderir aos canais digitais por medo de que eles pudessem desvirtuar o que se entende como “experiência”. A demora das grandes maisons globais em aderir ao e-commerce, diante de outros setores, era um exemplo patente.

Mas o senso de que a magia dos produtos de luxo só pode ser aproveitada no mundo físico está ficando para trás. Um estudo realizado pela Bain & Co a pedido do Comitê Colbert, a associação de grifes francesas, releva que a indústria global de artigos de luxo está acelerando a adoção de tecnologias emergentes que vão do metaverso ao NFT.

"Historicamente, a indústria de luxo é muito mais associada à arte do que à ciência. Estamos vivendo uma transformação grande, onde as marcas estão aprendendo a usar dados e novas tecnologias para elevar a experiência dos clientes", explica Gabriele Zuccarelli, sócio da consultoria americana Bain & Company na América Latina, em entrevista ao NeoFeed.

No final do mês passado, por exemplo, a Gucci anunciou seu próprio mundo no metaverso. O Gucci Vault Land, no The Sandbox, é uma empreitada experimental da marca, que tem obras de arte em NFT com curadoria, possui um espaço sobre a herança histórica da Gucci e, claro, abriga uma exposição de roupas e acessórios virtuais.

A Balenciaga também apostou nos games ao firmar uma parceria com o jogo Fortnite. A bandeira produz skins exclusivas que são comercializadas entre os 350 milhões de usuários por cerca de US$ 8. Outra marca que também já veste seres virtuais é a Burberry, que acaba de lançar uma coleção inédita no jogo Minecraft.

“Se antes da pandemia você perguntasse quais marcas de luxo estavam utilizando NFT e metaverso, a resposta seria: Whaaat?”, brinca Zuccarelli

“Se antes da pandemia você perguntasse quais marcas de luxo estavam utilizando NFT e metaverso, a resposta seria: Whaaat?”, brinca Zuccarelli. De acordo com o executivo, o estudo realizado pela Bain mostra que, depois de 2020, as marcas de luxo aderiram a pelo menos duas tecnologias novas entre as 16 categorias identificadas na análise - entre elas biotecnologias, reciclagem molecular, impressão 3D, inteligência artificial, machine learning para otimização de processos, e outras.

Segundo o Comitê Colbert, a pesquisa foi encomendada para mapear os benefícios do emprego de tecnologias emergentes na indústria de luxo em um contexto que em que as marcas estão quebrando a resistência em aderir inovações, mesmo que ainda de forma muito tímida se comparado com outras indústrias.

“A adoção de novas tecnologias na indústria de luxo ainda está engatinhando, mas pode desempenhar um papel central na transformação do setor”, diz Mathilde Haemmerlé, sócia da Bain & Company, em Paris, e uma das responsáveis pelo estudo.

O relatório da Bain mostra que as razões para não se adotar uma tecnologia, em quase metade dos casos, foi sua relevância limitada para necessidades específicas das empresas de luxo que valorizam a tradição e o "hand made". Obstáculos históricos, como a incompatibilidade com o DNA da indústria do luxo, contudo, são raramente citados, o que revelaria "uma transformação cultural no setor de luxo".

“Na pandemia, as lojas fecharam e as marcas de luxo ficaram com dois problemas: como vender os produtos e como manter um engajamento com os consumidores mesmo à distância”, afirma Zuccarelli. “Esse cenário ajudou a acelerar as experiências de marcas de luxo no online. A adoção dessas tecnologias ocorreu no tempo esperado, dado as características do segmento.”

Mathilde Haemmerlé, sócia da Bain & Company, em Paris, e uma das responsáveis pelo estudo

O estudo da Bain aponta três principais fatores que vêm norteando a transformação do luxo. Em primeiro lugar, o que mais motiva as marcas a adotarem novas tecnologias são os benefícios na fluidez da relação entre as maisons e os consumidores. A melhora no desempenho operacional e logístico dos negócios através da aquisição de ferramentas mais modernas é o segundo fator. Por fim, a redução da pegada de carbono em consonância com as agendas ESG é o terceiro ponto-chave.

A criação de comunidades de clientes mais engajados com as maisons é uma preocupação cada vez mais recorrente entre as grifes. No gigantesco mercado chinês, a Cartier, que faz parte do comitê Colbert, por exemplo, possui um ecossistema próprio dentro do aplicativo WeChat, usado por 1 bilhão de chineses. No seu universo 3D criado com ajuda de inteligência artificial, a marca oferece visitas virtuais às suas boutiques e dá recomendações personalizadas de presentes.

O grupo Kering, dono da Balenciaga, Bottega Veneta, Gucci, Alexander McQueen e Yves Saint Laurent, adotou tecnologias como a RFID (identificação por radiofrequência) para melhorar a rastreabilidade dos seus produtos e tornar a distribuição mais eficiente e automatizada, com ganhos no desempenho operacional e de logística. As marcas sob o guarda-chuva da Kering também já entraram no mundo do metaverso e do NFT, com desfiles de moda e showrooms digitais.

Quando a pauta é ESG, as grifes estão usando tecnologias como a biotecnologia para produzir materiais mais verdes, sem uso de componentes de origem animal. A Gucci possui parceria a startup Vitro-Lab, que fabrica couro sintético em laboratório. Já Balenciaga e a startup Mogu produzem tecidos com cogumelos e plantas.

Em média, revelou o estudo, as marcas de luxo mantêm em testes ou planejam implementar nos próximos três anos pelo menos três tecnologias adicionais as que já vêm sendo utilizadas.

O estudo analisou 75 das 95 marcas de luxo francesas que compõem o comitê Colbert, referência mundial do mercado premium. Entre as marcas analisadas estão líderes mundiais como Hermès, Cartier, Yves Saint Laurent, Givenchy e outras. As bandeiras apoiadas por grupos maiores, como Kering e LVMH, adotaram em média 2,1 vezes mais tecnologias do que seus concorrentes independentes.

A transformação da indústria de luxo acontece em um contexto de mudança geracional dos consumidores. De acordo com a Bain, as gerações Y e Z representarão 55% dos clientes de luxo até 2025. Além de mais jovens, os millennials são muito mais exigentes na hora de consumir.

Eles querem ser atendidos com mais agilidade, prezam por uma personalização ao extremo e se preocupam com o histórico das marcas, as origens e os impactos que seu produtos têm no meio-ambiente. “O consumidor de luxo se acostumou a ter experiências digitais muito bem resolvidas, desde comprar na Amazon até ouvir música no Spotify. Para esse público, é fundamental conseguir se relacionar com as marcas de luxo também no universo digital”, finaliza Zuccarelli.