Não é difícil explicar ou compreender o significado da corrente literária surgida na França entre as duas guerras mundiais chamada “existencialismo”. Como o próprio termo sugere, pense em histórias com personagens atormentados, perdidos no mundo e na vida, que questionam o sentido de tudo.
Seus adeptos exploravam em romances e contos o que costuma ser definido dilemas da existência, como liberdade, responsabilidade e ação individual. Sua filosofia propõe, portanto, que a existência preceda a essência, ou seja, que os seres humanos definam quem são por meio de suas escolhas e ações.
Desse conceito surgiram grandes obras como A Náusea, de Jean-Paul Sartre, e O Estrangeiro e A Peste, de Albert Camus. Esses livros transformaram os dois autores em escritores dos mais significativos do século XX no mundo. E ainda continuam com poder e apelo atemporais, estudados por gerações, enquanto seus trabalhos filosóficos mantêm influência duradoura.
Como expoente dessa escola, Camus ganhou o Prêmio Nobel de Literatura com apenas 44 anos, em 1957, e sua morte em um acidente de carro em 1960 ironicamente fez jus ao movimento existencialista, pelo modo dramático como aconteceu. Embora tenha se empenhado em driblar pelo menos quatro biógrafos que queriam saber detalhes da sua vida, ele acabaria por ganhar uma das biografias mais celebradas e elogiadas do final século passado.
Com 882 páginas, Albert Camus: Uma vida, Olivier Todd, acaba de ganhar uma edição brasileira pela Record. Não é preciso ter lido romance algum do escritor para se deleitar nessa história, não apenas por ser um personagem real e importante, como também por tratar de uma das épocas mais ricas e fascinantes dos últimos cem anos, quando a França se envolveu em suas guerras mundiais e promoveu o nascimento de movimentos de vanguarda na pintura, na literatura e no cinema.
Autorizado pela família de Camus a escrever sua vida de forma “definitiva”, Todd construiu um rico painel de época (vale por uma pós-graduação em história da Europa). Tudo é mostrado a partir da vida do escritor, que nasceu em 1913 em uma fazenda perto de Mondovi, na Argélia. Ele se baseou principalmente em depoimentos para suprir a falta de informações de um personagem que escondeu ao máximo sua vida pessoal.
Camus temia ser biografado. Não por acaso, o psicanalista e filósofo francês J. B. Pontalis, citado por Todd, observou que “há uma centena de biografias possíveis para cada ser humano”. Assim, pode-se ter uma ideia da dificuldade de contar a vida de alguém. “Destaquei, assim espero, os momentos e os personagens importantes de uma vida”, observou o autor.
Para Todd, não foi uma tarefa fácil por um outro aspecto: uma personalidade literária tem inimigos verdadeiros durante a vida e quase o mesmo número de falsos amigos depois da morte. Historiadores, juízes, biógrafos, todos esbarram na fragilidade dos depoimentos, acrescentou. Trinta anos depois da morte de Camus, escreveu ele, era tempo de fazer uma triagem de quem poderia falar.
Mesmo assim, o desafio não foi menor. Alguns de seus íntimos permaneciam pouco conhecidos ou desconhecidos até ele procurá-los, às vezes anônimos, recolhidos à reserva de uma amizade ou de um amor. “Terminado o luto, pessoas próximas fazem confidências”, observou. Antes do falecimento de sua viúva Francine Camus, em 24 de dezembro de 1979, também a decência impunha reservas, segundo ele.
Camus teve uma infância empobrecida em Argel e prosseguiu em seu conflito entre a simpatia pela classe trabalhadora argelina e pelos colonos franceses, que tiveram participação importante em sua terra adotiva.
Para o biógrafo, sua vida foi marcada por escolhas impossíveis e luta perpétua: a intimidade com a poderosa família Gallimard, dona da mais respeitada editora francesa, apesar de suas atividades colaboracionistas; seu envolvimento no conflito entre Sartre e Simone de Beauvoir; suas próprias batalhas por causa da tuberculose e com a natureza apaixonada e inquieta que nunca o deixaria se estabelecer.
Com base também na correspondência pessoal de Camus, em gravações inéditas e entrevistas com familiares, amigos e amantes do escritor, Todd deixa os acontecimentos falarem por si e esse é o trunfo do seu livro: a sutileza.
Ele entrega ao leitor a missão de interpretar o que acontece, enquanto revive a vida de Camus, que terminou em 4 de janeiro de 1960, quando ele voltava para Paris depois de um feriado e sofreu um acidente de carro. Como ele costumava dizer a respeito de fatalidades em acidentes automobilísticos, a sua foi “uma morte imbecil”.
Chamada pelo The Sunday Times de “biografia monumental”, a parte da guerra é uma das mais empolgantes do livro, pois Camus foi um herói da Resistência Francesa, um defensor dos árabes muçulmanos de sua Argélia natal, um militante de esquerda que se posicionava contra o regime ditatorial do stalinismo e um dos principais líderes de sua geração de escritores.
No jornalismo, Camus descobriu a “profissão superior”, quando começou a escrever para o periódico liberal Alger Républicain. Ao mesmo tempo, produzia peças publicitárias para o centro de cultura da Argélia, que contribuíram para campanhas políticas de denúncia da miséria dos muçulmanos que o obrigaram a abandonar seu país natal, onde não conseguia mais trabalho, e a se exilar em 1940, em Paris, em um momento crítico da guerra para os franceses.
Proximidade com Sartre e Simone de Beauvoir
Não podia imaginar a guinada que sua vida daria na capital francesa, onde produziu suas principais obras, como os aclamados O mito de Sísifo e O Estrangeiro, depois que se aproximou do casal Sartre e Simone de Beauvoir e os três se tornaram inseparáveis. No fim da Segunda Guerra, pelo seu papel no conflito, tornou-se uma celebridade em Paris.
Precoce, virou romancista respeitado com boas vendas, filósofo, editor de um importante jornal. E se assumiu personagem polêmico, a ponto de recusar a Legião de Honra e um convite para ingressar na Académie Française de Letras. Em 1951, afastou-se do Partido Comunista, depois de brigar com Sartre e com os intelectuais franceses de esquerda.
Ao revelar sua vida pública e privada, sem se desvincular da corrente existencialista que consagrou Camus, Todd expõe a complexidade de um escritor que ele definiu como “charmoso e virulento, sincero e teatral, arrogante e inseguro”. Ao mesmo tempo, contrapõe a vida de Camus a momentos históricos, como a ocupação francesa do norte da África, e ao ambiente da Paris literária do pós-guerra.
Ele resume seu biografado por sua vida privada conturbada, com uma atração compulsiva por mulheres, a luta contra uma tuberculose debilitante e as polêmicas intelectuais em defesa de suas posições intelectuais.
Sua vida pública foi uma longa batalha por ideias generosas, por sua arte e contra o terrorismo ideológico e material por parte de seus oponentes e inimigos. Para ele, na vida de um ser humano, ações e pensamentos devem coincidir. E sua filosofia podia ser resumida em três palavras: liberdade, justiça e revolta – dentro de si, como elementos transformadores de cada um.