Há mil e uma razões pelas quais o consumidor mais entendido de vinho costuma torcer o nariz quando escuta a palavra "moscatel". A uva, que na realidade compreende uma família com mais de 200 variedades, tende a ser automaticamente associada a rótulos comerciais baratos e cheios de açúcar, produzidos em grandes volumes.
Uma garrafa de espumante moscatel, por exemplo, pode conter até 60 gramas de açúcar residual por litro. As características da uva, conhecida por seu dulçor, frutado e aromas intensos, historicamente a associaram exclusivamente a vinhos de sobremesa ─ que entre os brasileiros são consumidos nas festas de Natal e Ano Novo, acompanhado de pavê ou panetone.
Mas, para além dos vinhos licorosos, um movimento recente de ressignificação da moscatel chama a atenção de sommeliers e profissionais do segmento. Em terroirs chilenos, argentinos e até brasileiros, produtores de pequeno e médio porte estão mudando a forma como manejam e vinificam a uva.
O resultado são rótulos secos muito melhores e mais complexos do que os vendidos em massa nas prateleiras dos supermercados.
“A moscatel vinha sendo tratada como uva de vinho de volume. Eu comecei a perceber uma mudança, como sommelière e consumidora, nos últimos cinco anos”, diz Cássia Campos, que, com a sócia Daniela Bravin, comanda o Sede 261, eleito o “melhor bar de vinhos de São Paulo” em 2023.
A sommelière visitou diversas regiões chilenas recentemente e se surpreendeu com a qualidade dos novos moscatéis que estão surgindo. “Encontramos vinhos com perfil mais fino, complexidade aromática maior e até mesmo certa salinidade. Diversos produtores confirmam que do ponto de vista da vinicultura, eles estão tendo mais cuidado com o moscatel”, afirma Cássia.
O sucesso dessa nova geração de moscatéis tem mais a ver com o modo de produção do vinho do que com o tipo de uva utilizada. Obviamente, cada região tem uma uva que se dará melhor no terroir e que conferirá à bebida características específicas, mas o trabalho do produtor e do enólogo parece ser mais importante do que a uva em si, quando o assunto é produzir moscatel de mais qualidade.
“A doçura, por exemplo, não é responsabilidade da uva, mas sim uma escolha do produtor, que pode pode fazer o vinho doce ou não”, diz Bruno Bertoli, responsável pelos vinhos naturais e biodinâmicos do bar paulista Beverino. Ainda que a uva não seja o único critério de sucesso de um bom vinho, algumas variedades da família moscatel têm sido mais exploradas e dado ótimos rótulos, conta.
Um exemplo citado pelo sommelier é a Moscatel de Alexandria, uma das vinhas mais antigas existentes que passa por um “resgate” regional nas mãos de produtores chilenos. “Moscatel de Alexandria tem se difundido muito no Chile como uma redescoberta da tradição camponesa chilena da vinificação”.
A origem da moscatel remonta há mais de cinco mil anos, na região do mediterrâneo, onde até hoje é muito popular, sobretudo na Itália e na Espanha. Na América do Sul, esse tipo de uva foi introduzida em meados do século XVII e vingou muito bem no clima tropical, mas apesar disso também sofreu muita concorrência.
“As uvas presentes desde a colonização foram perdendo espaço para cepas que vinham de fora. Hoje, na esteira dos vinhos naturais, esse movimento se articulou como um resgate de tradição”, comenta Bertoli sobre os novos rótulos artesanais.
Já o responsável pela carta de vinhos do prestigiado restaurante Arturito, de Paola Carosella, o sommelier argentino Bautista Casafús acredita que o movimento de resgate da moscatel não é único.
“Existe um movimento geral de ressignificação de uvas. Na Argentina, por exemplo, aconteceu o mesmo com as uvas criollas. Vejo um movimento internacional de ressignificar uvas atreladas à má qualidade simplesmente por uma questão histórica ou cultural, e não pela uva em si”, diz.
Todos os sommeliers ouvidos pela reportagem do NeoFeed provaram e aprovaram alguns dos novos exemplares de moscatel. Apesar de se tratar de um movimento relativamente recente, a uva está de fato sendo trabalhada com mais carinho, proporcionando rótulos “espetaculares” e “surpreendentes”, definem os especialistas.
No Brasil, já há rótulos bons, secos e doces, disponíveis no mercado. O desafio é convencer o consumidor a superar o preconceito com a uva.
“A Moscatel é sim uma uva muito aromática que precisa ser contida de alguma forma para não virar chá de perfume”, defende Cassafús, “Quando isso é feito com sucesso, esses aromas florais são super agradáveis e você pode esperar um ótimo vinho.”