A luz atravessa a porta de vidro colorido e se espalha pelo chão do hall em manchas rosadas, verdes e amarelas, como vitrais de uma igreja medieval. Um gato malhado desce a escada de madeira, cujo corrimão dourado brilha como os ornamentos de um afresco sacro. Pássaros voam e repousam sobre os degraus, como frequentadores de longa data. No chão, folhas e frutas caídas sugerem a ausência de humanos na casa.
“Todo mundo vê a casa como um altar”, diz a artista Ana Elisa Egreja. Essa aura sagrada é capturada na pintura Escada Jardim Romano, que abre sua mais recente individual, Horizonte Dourado, na galeria Almeida & Dale, em São Paulo.
Com curadoria de Lilia Schwarz, a mostra reúne uma nova série de obras nascidas de uma pesquisa profunda sobre a pintura dos artistas italianos Giotto e Duccio, que decoravam as igrejas narrando as passagens bíblicas durante a Idade Média. Desse mergulho, a artista incorporou um elemento inédito à sua prática: a folha de ouro.
“Esses artistas pensavam o céu como sagrado, por isso usavam o dourado. Não havia uma preocupação com o realismo. Eu comecei este ano a trazer essa materialidade do ouro para o meu trabalho, e isso mudou tudo”, explica Ana Elisa, em entrevista ao NeoFeed. “Ao trazer o material para minha pintura, surgiu uma bidimensionalidade, como se uma parede tivesse sido criada.”
Conhecida por suas pinturas hiper-realistas em escala 1:1 — a chamada “verdadeira grandeza” —, Ana Elisa construiu uma carreira marcada pelo virtuosismo técnico e pela exploração da perspectiva.
A bidimensionalidade à qual ela se refere emerge com força em Horizonte Dourado, a tela de 100 x 150 cm, que dá título à mostra, tem o tamanho exato de uma janela.
Nos caixilhos pretos, estruturados por uma grade losangular, aparecem micos-leões-dourados. Dois pássaros cruzam a cena, acompanhados por anjos de pinturas medievais. No vidro, adesivos escolares de nuvens, frutas, planetas e naves espaciais acrescentam um vocabulário quase infantil.
Esse contraste é calculado: de um lado, a tradição bizantina do fundo dourado e das figuras sacras; de outro, uma iconografia lúdica e contemporânea, feita de símbolos cotidianos e quase pop. “Eu me coloco em pé de igualdade entre a alta e a baixa cultura o tempo todo no meu trabalho”, conta a artista.
De Vermeer ao Duralex
Ao estudar, por exemplo, a pintura holandesa do século 17, Ana Elisa descobriu que a técnica usada por Vermeer, autor de A Moça com Brinco de Pérola, para retratar uma pérola era a mesma necessária para pintar o vidro martelado tão comum nos vitrôs de banheiros.
“Eu falo da coisa mais erudita que existe, com embasamento na história da arte, pintando elementos muito baratos da minha cultura e que eu fui encontrando por aí, porque eu acho que tem que ser assim. Faz sentido para mim”, explica.
Essa lógica se intensifica na última sala da mostra, com a série de naturezas-mortas pintadas a partir de pratos de vidro Duralex cor âmbar — onipresentes nas cozinhas brasileiras dos anos 1960 até o fim do século passado e hoje de volta à moda.
Ali, a artista oferece um banquete: aspargos, ovos, jabuticabas, maracujás, tomates, peixes… Tudo disposto na travessa translúcida amarronzada.
Quando começou a pintar a louça em telas redondas ou ovais, a artista percebeu a falta de um fundo. Afinal, ao comer nesses pratos, a toalha de mesa acaba compondo a imagem junto à comida. Para resolver isso, passou a pedir a amigos jogos americanos para usar em suas composições, capazes de despertar no visitante memórias afetivas.
“Eu queria que os panos viessem com as histórias das famílias que me doam — o pingo de molho que ficou, a marca de uma refeição”, comenta. “Gosto de alcançar o inconsciente coletivo. A hora em que sinto que a pintura funciona é quando alguém reconhece aquele jogo americano porque já comeu sobre um igual ou no prato Duralex.”
O interesse pela casa e pelos objetos domésticos já habitava o imaginário de Ana Elisa antes mesmo de ela se decidir pela pintura.
Hoje, aos 42 anos, a artista ainda se recorda do impacto ao ver, aos 16, a instalação Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles, apresentada na 24ª Bienal de São Paulo, em 1998. Na obra, o artista fluminense recriou uma sala inteira em tons de vermelho.
“No trabalho do Cildo, entra a cor, que é uma questão para mim, mas também esse colecionismo. Muitas peças foram doadas para o artista. As pessoas participaram do trabalho, exatamente como acontece agora com os jogos americanos que recebo”, lembra.
Desde então, sua pesquisa manteve uma coerência linear, sustentada em dois pilares: a pintura holandesa do século 17 e o realismo fantástico da literatura latino-americana, de Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges.
Para a artista, embora a mostra atual não seja uma retrospectiva, cada obra carrega em si um pouco desses 20 anos de carreira.
“Minha pesquisa é linear. A casa está sempre presente como personagem principal”, diz. “O foco dentro dela vai mudando, mas sigo em busca desses objetos afetivos com os quais convivemos e que permanecem como vestígios potentes da vida humana.”