Foi de última hora que Angelo Gaja, 83 anos, um dos nomes mais respeitados e revolucionários do mundo dos vinhos, decidiu acompanhar o filho Giovanni, 30, na primeira visita da família ao Brasil após a pandemia. Membro mais novo da quinta geração do negócio criado em 1859 por seu tataravô (de quem traz o nome), Giovanni vem aos poucos assumindo as funções da vinícola com as irmãs Gaia e Rossana.

Mas ainda é o pai, responsável por posicionar os Barbarescos da família como ícones internacionais – o mais emblemático deles é vendido no Brasil pela importadora Mistral, por R$ 3,2 mil (2017) –, quem encabeça as decisões na família.

Ao longo dos mais de 60 anos à frente da vinícola, Angelo ousou fazer brancos em terras de tintos, introduzindo castas estrangeiras como chardonnay e sauvignon blanc no Piemonte, onde a nebbiolo reinava absoluta.

Foi pioneiro ao vinificar exclusivamente suas próprias uvas (sem incluir bagas compradas) e, posteriormente, fazer o processo usando uvas de parcelas específicas. Bem como testar o envelhecimento do vinho em barricas de carvalhor e replicar seu estilo leve e de qualidade em outras regiões, como Montalcino e Bolgheri (ambos na Toscana). Medidas que na época eram impensáveis na Itália, mas hoje soam muito natural.

Assim como poderão ser vistas suas ideias mais recentes como focar na produção de cepas brancas, mais resistentes ao calor e em terrenos de grande altitude, em diferentes regiões italianas. E expandir a atuação e know-how da marca para além do país da bota.

“Temos propostas para produzir vinhos em joint venture em outros países”, afirmou ele ao NeoFeed, sem revelar exatamente onde. No mercado, ventila que a primeira escala seria na Alemanha.

Em 2016, uniu-se ao produtor Alberto Graci para começar a explorar a Sicília em um terreno de 21 hectares na porção Sudeste do Etna, a 600 e mil metros do nível do mar, onde trabalha com uvas nativas (carricante, nerello mascalesse e nerelo cappuccio) que deram origem à da linha Idda (posicionada na faixa de entrada dos Gaja, com preço na casa dos R$ 870).

Pieve Santa Restituta, em Montalcino: vinícola toscana de Angelo Gaja onde produz brunellos
Pieve Santa Restituta, em Montalcino: vinícola toscana de Angelo Gaja onde produz brunellos

Neste ano, vinifica pela primeira vez na nova vinícola implementada na região de Alta Langa - localizada a 15 quilômetros ao Sul de Barbaresco, onde a altitude chega a 700 metros, ao contrário dos 270 metros de onde está hoje.

“Antigamente, era impensável produzir uvas de qualidade a mais de 500 metros. Mas hoje é um microclima totalmente diferente e estamos explorando isso”, conta Angelo, que já plantou chardonnay e sauvignon blanc em 90% do espaço.

O restante está sendo dedicado a experimentações com erbaluce, pinot bianco e riesling, entre outras variedades, “porque ainda temos muito a aprender sobre essa nova área”, completa Giovanni, o filho caçula. “É preciso ser paciente para observar e aprender”, amarra o patriarca, de certa forma aumentando a responsabilidade para a nova geração, que disfarça o peso.

“No futuro, não acredito que precisemos revolucionar como fez Angelo, mas manter o que já foi feito e nos adaptarmos aos novos desafios, como o da mudança climática, para continuar produzindo vinhos no nosso estilo, com o mesmo caráter e identidade”, afirma Giovanni.

A seguir, trechos da entrevista concedida por Angelo e Giovanni Gaja ao NeoFeed:

Como podemos definir o estilo Gaja nas diferentes regiões em que produzem?
Angelo Gaja: Um vinho deve surpreender e transportar quem o prova para o local onde foi produzido. Ter o sabor e o caráter de sua origem e da variedade de uva usada. O tempo todo tentamos fazer vinhos mais leves, não tão ricos em volume, por isso somos bastante moderados em todo o processo: colhemos uvas não muito maduras, quando ainda estão crocantes, não buscamos muita extração das cascas durante a fermentação, não usamos muita madeira. O vinho não precisa ser superconcentrado para ter qualidade e elegância.

Giovanni e Angelo Gaja, em visita a São Paulo (Foto: Juliana Bianchi)

Giovanni Gaja: Nosso estilo tem a ver com nossa história de mais de 106 anos com a nebbiolo, que é uma variedade muito ácida, tânica, mas com corpo leve. E é isso que queremos expressar em nossos vinhos, mesmo na Toscana ou na Sicília. Para nós, o frescor, a acidez e a estrutura dos taninos são a espinha dorsal de um vinho.

Como as mudanças climáticas estão afetando a produção de vinhos?
Angelo: O aquecimento global tem feito as uvas amadurecerem mais rápido a cada ano. O que resultou em um aumento do teor de açúcar e, consequentemente, no de álcool em pelo menos dois graus ou dois graus e meio, algo que às vezes criticamos, mas precisamos aceitar como benéfico para a qualidade do vinho. Existem outros aspectos que não tão positivos. Há riscos de seca e de novas doenças que precisamos entender e aprender a conviver em harmonia. Isso é cultura.

O que estão fazendo para minimizar esses impactos?
Angelo: É preciso manter a mente aberta e estar preparado para as mudanças. Criamos lagos artificiais e coletamos água da chuva para irrigarmos as plantações, o que era impensável antigamente. Protegemos as uvas do calor intenso com telas antes usadas apenas para evitar granizo. E talvez precisemos investir mais em equipe própria e treinamento, para as colheitas nas colinas, onde a uva amadurece mais lentamente, porque é um lugar difícil para as máquinas trabalharem.

"Os vinhos deste século serão diferentes dos do século passado. Temos que aceitar essa ideia não apenas na Itália, mas em todo o mundo"

Como será o vinho no futuro?
Angelo: Os vinhos deste século serão diferentes dos do século passado. O que não significa pior ou melhor. Temos que aceitar essa ideia não apenas na Itália, mas em todo o mundo. É preciso ser um bom observador nos vinhedos e na adega para entender o que está acontecendo e estar preparado para as mudanças. Ninguém tem a verdade absoluta. Precisamos ter coragem de proteger a identidade de nossos vinhos, sem buscar a eliminação completa de todas as pequenas imperfeições, que são parte do DNA do vinho. Se tentarmos manipular a bebida para eliminar todas essas pequenas imperfeições, perderemos a alma.

Vocês já estão produzindo em três outras regiões na Itália, além de Barbaresco. Ampliar ainda mais o território está nos planos?

Barbaresco Gaja (2017) R$ 3.200 e Idda R$ 804, ambos na Mistral
Barbaresco Gaja (2017) R$ 3.200 e Idda R$ 804, ambos na Mistral

Giovanni: Desde 2002, que foi um ano extremamente seco, nosso foco de investimento passou a ser em terras altas, vinhos brancos e na irrigação, que era algo ultrajante de se fazer no passado. Estamos construindo uma nova vinícola na região de Alta Langa, também no Piemonte, que será totalmente dedicada à produção de vinhos brancos, enquanto a vinícola de Barbaresco concentrará a vinificação dos tintos. A primeira colheita ali foi em 2020, cinco anos após a compra, mas apenas este ano estamos vinificando as uvas “in loco”. Hoje temos 17 hectares plantados, mas deverá chegar a 30 ou 32 hectares em sete ou oito anos. Vamos aos poucos para ter certeza de que as novas plantas conseguem entregar a qualidade que queremos.

Angelo: Temos propostas para produzir vinhos em joint venture em outros países. Eu digo para meus filhos, estejam preparados para olhar para fora e eventualmente descobrir ou operar em outras áreas onde se possa produzir vinhos em pequena quantidade, que sejam originais, leves, de qualidade e surpreendentes.

Podemos imaginar Gaja produzindo na América do Sul, por exemplo?
Angelo: Não necessariamente um vinho com a marca Gaja, mas produzido sobre o nome da vinícola, com alguém da família. Poderia ser uma oportunidade não necessariamente para fazer dinheiro, mas para observarmos e testarmos outras culturas e enriquecermos em conhecimento.

"Respeite todos os produtores, independente do tamanho ou filosofia, porque estamos todos trabalhando por um mesmo objetivo, que é fortalecer o mercado de vinho"

Que conselhos daria para a nova geração ser tão revolucionária como você foi?
Angelo: Cultive a dúvida e não durma nas certezas. Veja o que pode ser feito de forma diferente, somos capazes de pensar diferente. Tenha coragem para não ir sempre na mesma direção que os outros. E respeite todos os produtores, independente do tamanho ou filosofia, porque estamos todos trabalhando por um mesmo objetivo, que é fortalecer o mercado de vinho, porque não existe bebida culturalmente mais rica.

O consumo de vinho está caindo em todo o mundo. Como se aproximar da nova geração?
Angelo: Tem se ligado o vinho ao abuso de álcool. Mas o abuso de qualquer coisa é ruim. Sempre bebi vinho todos os dias. Meu pai fazia o mesmo e morreu com 92 anos. Precisamos ajudar as pessoas a entenderem que o vinho é especial e deve ser compartilhado, não bebido sozinho. E isso não é sobre generosidade, mas sobre ter a oportunidade de criar momentos que não serão os mesmos com água ou chá. Meu pai não gostava da palavra moderação. Mas sempre dizia, quem sabe beber, sabe viver.u