Há dez anos, uma antiga namorada, chamada aqui apenas por Ana Luísa, enviou a Nelson Motta uma pasta azul com a extensa correspondência, organizada em ordem cronológica, que ele havia lhe mandado entre 1964 e 1965 — depois que a relação foi rompida por uma traição (dele) e ela viajou para uma longa temporada em Paris.
Grande amiga até hoje, Ana Luísa, que se tornou designer e editora de livros, ficara impressionada ao reler aquela centena de cartas meio século depois, pela profundidade e pela qualidade da escrita, especialmente porque ambos tinham então apenas 20 anos. Ela sugeriu que ele tirasse suas próprias impressões, no ano que completavam 70 anos de vida. Nelson preferiu não olhar o conteúdo. Avisou a Ana Luísa que temia se emocionar demais com o que encontraria.
Por um desses caprichos do destino, o material simplesmente desapareceu em seus arquivos, quando foi procurá-lo em busca de alguma informação que servisse para sua autobiografia. Na pandemia, no entanto, sem querer, encontrou as cartas e passou a lê-las. Ficou surpreso com o conteúdo. Ana Luísa tinha razão. Algo precisava ser feito com aquele pequeno tesouro, que mais parecia ter vindo numa cápsula do tempo.
Decidiu reunir todas no livro Corações de Papel, que marca a sua estreia como autor na Editora Record. Várias dessas mensagens trazem deliciosas notas explicativas no rodapé que ajudam a contextualizar a época e os personagens citados. O resultado pode ser definido como uma fascinante jornada nostálgica ao Rio de Janeiro e ao Brasil dos anos 1960.
E pode fazer o leitor sentir saudade de uma época que não viveu. Em meio à paixão e ao desejo entre ambos, é vibrante ver como o interesse intelectual e cultural costumava ser usado para impressionar um(a) pretendente. Em um dos períodos mais ricos do século 20, acompanhamos Nelson e Ana Luísa se duelarem sobre quem leu mais livros ou viu os filmes incríveis (e fresquinhos) de alguns dos maiores cineastas de todos os tempos.
Os dois travam discussões fervorosas, sem deixar de lado declarações de amor, enquanto se envolviam na revolução estética inspirada pelo design moderno e pela Bauhaus, na fase áurea do cinema de arte, nos escritores e jornalistas em ascensão e no apogeu da cena musical brasileira.
Nomes como João Gilberto, Nara Leão, Dori Caymmi, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Zuenir Ventura, Ruy Guerra, Glauber Rocha, Ingmar Bergman e Luchino Visconti, mais vivos e produtivos do que nunca, são coadjuvantes de primeira grandeza do casal.
Em conversa com o NeoFeed, Nelson, que completa 80 anos no próximo dia 29 de outubro, dá detalhes dessa que é a sua obra mais surpreendente e pessoal. Sobre como, antes de mergulhar na vida artística, estudou design, conheceu Ana Luísa no primeiro ano da faculdade e viveu um romance de juventude com a colega — na verdade, duas colegas, porque na época também havia Leninha. Enfim, uma narrativa de formação que daria um livro. Como deu.
Confira seguir os principais trechos da entrevista.
Você diz na apresentação do livro que guardou a pasta azul sem abri-la porque tinha receio de se emocionar demais e passar mal. E o que aconteceu quando decidiu fazê-lo?
Eu me emocionei demais (risos). Às vezes, a gente faz coisas na vida e não sabe por quê, né? Essas cartas são totalmente surpreendentes para mim ainda hoje. Para um escritor, um artista, tudo que ele busca na vida é tocar as pessoas, fazê-las se emocionar. E isso vai além da estupidez pura e simples como recurso artístico ou literário. É muito estranho que essas cartas tenham sobrevivido. Mas talvez tudo isso aconteceu para que eu pudesse contar essa história, como dizia Gabriel Garcia Márquez, que eu adoro, para que eu pudesse “viver para contar”.
Com cartas tão confessionais, você não teve receio de se expor demais?
Eu tive receio de expor Ana Luísa e Leninha também, que são minhas amigas até hoje. Quanto a mim, pessoalmente, parece que tem ali outra pessoa. Eu li aquilo tudo, escrito por aquele garoto de 20 anos e não imaginei nem mais como era meu rosto. E tanta coisa que o garoto fala e que mudaram também. Eu achei que fazer o livro seria uma exposição sincera. O garoto é superentusiasmado, é progressista, cheio de ideias, tem uma história ali cheia de polêmicas culturais dele com Ana Luísa, que era e é uma moça mais clássica, mais conservadora.
Você tem orgulho daquele garoto?
Fiquei muito comovido com ele, pensei enquanto lia: “Puxa, que garoto legal”. Mas me envergonha, pois eu namorava as duas meninas ao mesmo tempo, enganava as duas. De qualquer modo, aquele era um garoto legal.
Na preparação do livro, você editou algumas cartas para poder publicá-las?
Fiz isso bastante, mas não por censura. Cortei muita coisa que era repetitiva, era um caudal de cartas, umas cem, pelo menos, com várias páginas cada uma. Então, deixei só o filé mignon, tudo aquilo que tornasse a leitura mais ágil.
Numa carta você diz que Chico Buarque era um instrumentista mediano e um cantor bem ruim. Hoje você discorda, não é?
(Risos) Totalmente. Chico se tornou um excelente cantor. Mas isso também era a opinião que ele tinha sobre si mesmo, no início da carreira. E foi indo à luta, amadurecendo, encontrando o estilo dele. Como cantor, tornou-se um grande estilista. Por outro lado, essa afirmação era um pouco para provocar Ana Luísa, pois ela era fã de Chico e a irmã dela namorava Carlinhos Vergueiro. Enfim, tinha uma coisa de proximidade assim entre eles.
Feliz do tempo em que se tentava conquistar uma garota pelo encanto intelectual, como fazia Nelsinho com Ana Luísa.
Acho que isso ainda vale, acho que ainda funciona (risos). Eu tentava impressioná-la por esse lado, mas ela gostava de mim porque tinha uma malandragem carioca de minha parte, descontraído. Ela se encantava com isso, que era completamente diferente do mundo dela. Eu achava que Ana Luísa me considerava meio leviano, não era um cara sério, não tinha cultura. Então, começou um duelo cultural entre nós, porém movido pelo impulso amoroso.
Você lamentou não ter guardado as cartas que ela te enviou, quando editava as suas para o livro?
Puxa, totalmente... eu não quero nem falar nisso. Se bem que ela, depois que me deu as cartas, comentou: ‘Como eu era chata’. Então, a pretexto disso, era uma história amorosa juvenil. Para ela era o primeiro amor e, para mim, uma relação dúbia que ia e voltava, que separava, ficava com uma, com a outra, voltava com as duas. Eu aprontei muito com ela. Pelas cartas, porém, acho que eu conseguia me recompor porque eu realmente a amava. A história tem uma boa dinâmica, tem umas surpresas e uma virada no final.
São memórias que você compartilha agora com um rico painel de época. É um documento para a história.
Eu tinha 20 anos num Brasil em transformação violenta. Eu decidi trabalhar nisso porque o cenário de época era muito interessante no nosso País e no mundo. São anos de grandes transformações nas artes, na cultura, no comportamento, na política. E vi ali uma história de amor muito sincera, muito delicada, muito emocionante desses três garotos.
Em 2022, você passou um tempo em Portugal. Foi um período pré-determinado?
Eu decidi ir para lá no fim 2021, porque estava horrível viver no Brasil e havia uma séria ameaça de Bolsonaro ganhar novamente as eleições. Conforme as coisas se desenrolassem negativamente aqui eu continuaria por lá. Voltei ao Brasil em janeiro do ano passado e no retorno decidi que estava encerrada a minha estada em Portugal. Eu deveria participar dessa retomada no Brasil. E não pretendo sair tão cedo.
No momento, você está escrevendo algum livro?
Não. Eu tenho vontade de escrever um outro livro, sabe? Tenho um material imenso de contos. Gostaria biografar meu grande amigo Joãosinho Trinta. Mas precisaria da ajuda de alguém na pesquisa porque não quero fazer o trabalho braçal. Quero só contar como foi a vida dele.