A melhor chef mulher do mundo é uma brasileira, nascida há 49 anos, em um cortiço, no centro de São Paulo. Filha de uma hostess de boate e um gerente de loja de discos, a melhor chef mulher do mundo é Janaína Torres, eleita pela pelo britânico World’s 50 Best Restaurants.
Ela está à frente da consagradíssima A Casa do Porco (12º melhor restaurante do mundo e 4º, da América Latina), do Bar da Dona Onça, do Hot Pork, da Sorveteria do Centro e da Merenda da Cidade. Juntos, os cinco negócios faturaram, em 2023, R$ 100 milhões.
A trajetória profissional de Janaína sempre esteve atrelada à do ex-marido e ainda sócio Jefferson Rueda. E a ele sempre couberam os holofotes.
Depois de quase 20 anos de casamento, em 2022, veio a separação e, para sua surpresa, ela passou a experimentar um protagonismo desconhecido até então; apesar da notoriedade de sua cozinha.
Reflexo do modo como se colocaria no mundo a partir dali, Janaína recuperou o sobrenome de solteira –Torres, de origem espanhola.
“Eu estava feliz nos bastidores, mas a vida me impulsionou naturalmente e nesse momento percebi que eu mesma me apagava”, conta a chef, ao NeoFeed.
E ela completa: “Por que eu fazia isso? Ainda não descobri, só descobri o quão importante é a gente batalhar pela nossa própria história”.
E é o que ela vem fazendo; com maestria. Em 2023, Janaína foi nomeada, também pelo 50 Best, a melhor chef feminina da América Latina. Com o prêmio de agora, a chef chega ao ápice da honraria.
A contramão
Não é fácil, nem nunca foi, mas Janaína soube se virar em um ambiente, até hoje, predominantemente masculino.
“Dificuldade sempre tem, mas eu ganhei o coração dos grandes chefs preparando a comida que os fazia felizes. Fui quebrando o gelo e mostrando que comida acessível também poderia ser feita com um olhar mais modernista. Assim ganhei o respeito para adentrar nas cozinhas estreladas”, diz ela.
E fez isso sem se afastar de suas origens e crenças: “Eu nunca tive medo de andar na contramão”.
Adepta de uma cozinha inclusiva, simples e afetiva, sua maior contramão foi a panela de pressão – “na entrada de todo o cortiço tem sempre um fogão e uma panela de pressão”, lembra.
Em geral, os cozinheiros mais estrelados condenam o uso do utensílio. Mas, Janaína nunca abriu mão da sua panela. As mulheres, mães e donas de casa, não têm tempo para os cozimentos longos, costuma explicar.
Quando Janaína e Jefferson inauguram o primeiro empreendimento, o Bar da Dona Onça, em 2008, lá estava a panela de pressão.
Essa “contramão” fez do restaurante a “grande casa da cozinha popular brasileira dos anos 2000”, como ela define.
Histórias de Janaína e sua panela de pressão não faltam. Em 2019, em uma viagem a Paris, a chef foi convidada a fazer uma almoço para moradores de rua. Escolheu preparar uma feijoada.
Maria Vargas, sua PR, não acreditou, quando ela abriu a mala e tirou a panela de lá de dentro. “Por isso, a bagagem pesava feito chumbo”, diverte-se a amiga.
As mulheres e os cozinheiros de rua
Janaína foi autodidata. Aprendeu culinária com as mulheres de sua família, os funcionários das casas onde a mãe trabalhava, os cozinheiros de rua...
Começou ainda criança e aos 14 anos abandonou a escola. Vendeu coxinha, sanduíche natural e teve barraca de comida brasileira na praça da República. E, assim, ela se formou.
Aos 33 anos, já casada com Jefferson, partiria para seu primeiro empreendimento, o Bar da Dona Onça. O nome da casa, aliás, foi inspirado no apelido dado à chef pelos amigos. Mulher geniosa, provocavam.
Hoje, Janaína traz a estampa do felino tatuada ao longo de todo o braço esquerdo.
Com apenas R$ 120 mil, o então casal não conseguiria bancar o restaurante sozinho. A ajuda de Júlio César de Toledo Piza Junior (1940-2020), pecuarista e ex-presidente da Bolsa de Mercadorias de São Paulo, atual BM&F Bovespa, foi fundamental.
Mais tarde, em 2015, seu filho Julio Neto seria sócio investidor d’A Casa do Porco, o único dos cinco negócios focado na alta gastronomia.
A ideia de montar um restaurante dedicado a um único ingrediente foi de Janaína.
Ela queria unir o conhecimento adquirido com os bisavós espanhóis, que vendiam carne de porco em lata, em Catanduva, no interior de São Paulo, como a experiência de Jefferson, como açougueiro em São José do Rio Pardo, “a cidade do porco”.
Já ele defendia a criação de um açougue-bar. Apostar em "Dona Onça", como o futuro mostraria, foi a melhor decisão.
Ao trabalhar com apenas um tipo de carne, explica Janaína, o desperdício é muito menor, já que se prioriza o uso de todas as partes do animal.
Tirar o máximo proveito dos alimentos é outra lição trazida de casa. “Como éramos muito pobres, na minha família, nunca jogávamos comida fora”, conta.
Bar da Dona Onça, A Casa do Porco... em seguida, vieram o Hot Pork, dedicado a cachorros-quentes, e a Sorveteria do Centro. Ambos nasceram do desejo do casal de cozinhar alimentos mais saudáveis para os filhos João Pedro e Joaquim, hoje com 17 e 14 anos, respectivamente.
Atualmente, a salsicha, criada na cozinha da casa da família, integra o cardápio de embutidos artesanais da Porco Real. Janaína e Jefferson são donos ainda do Sítio Torres Rueda, na cidade natal do chef. Lá, eles cultivam vegetais e criam porcos – "soltos", como ela faz questão de sempre frisar.
No ano passado, inauguraram o Merenda da Cidade, onde oferecem aos clientes a mesma comida servida aos funcionários de todos os empreendimentos de Janaína e Jefferson –R$ 40, o prato.
A casa é um desdobramento do projeto “Cozinheiros pela Educação”, entre 2015 e 2019, pela melhoria da qualidade da merenda oferecida nas escolas estaduais de São Paulo.
Viva o centro
Todos os negócios de Janaína estão no centro de São Paulo. Ela tem um orgulho danado de ter sido uma das pioneiras do movimento de revitalização da região. O Bar da Dona Onça, por exemplo, está no térreo do Edifício Copan, símbolo da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer (1907-2012).
Durante a pandemia, as receitas da chef foram parar no Instituto do Coração, em São Paulo.
“Comentei com ela que muitos funcionários da cozinha do hospital estavam afastados por causa da covid", lembra o cardiologista Sergio Timerman, cliente, amigo e médico da família, em conversa com o NeoFeed. “Uma semana depois, Janaína passou a mandar 200 marmitas, todos os dias, para o instituto.”
A melhor chef do mundo não para.
Em 2025, pretende inaugurar seu primeiro empreendimento solo. Batizado A Brasileira, será uma espécie de autobiografia, através da comida. Estarão lá nos novos preparos toda a sua trajetória – dos cortiços aos restaurantes estrelados, passando pelos bisavós espanhóis.
“A Brasileira é um projeto de pesquisa onde o Brasil será o protagonista e toda sua história imigratória, política, cultural. Vai ter de tudo um pouco”, adianta ela, ao NeoFeed.