"Seu Jorge, meu caro
Não nos conhecemos, mas sei muito de você. Impossível não saber de coisas transcendentes, seu trabalho, sua arte, seu ativismo, sua batalha que é a de todos os lúcidos deste Brasil. Ainda existem, todos envolvidos na mesma batalha.
Como diz Carlos Russo, ensaísta de bom tom a quem acompanho na internet, “a cada dia sabemos de um caso de intolerância que repugna. Nos dias de hoje, as deturpações da história, o surgimento de crendices manipuladoras e obscurantistas são agressivas, autoritárias e sua divulgação tão absurda e abjeta!
A razão tem sido substituída por uma intuição emocional. E por isto, a futilidade, a incultura, a ausência de racionalidade e a boçalidade se arvoram em mães da intolerância e da desconstrução dos valores civilizacionais, que a humanidade demorou séculos para consolidar!
Brasil e racismo. Não nos enganemos mais, este povo jamais foi cordial, é racista por convicção, de corpo e alma. Uma vez atingidos por ele, perdemos a autoestima e a noção de quem somos. Tenho uma noção por uma leve experiência que me marcou.
"Brasil e racismo. Não nos enganemos mais, este povo jamais foi cordial, é racista por convicção, de corpo e alma. Uma vez atingidos por ele, perdemos a autoestima e a noção de quem somos"
Aos 16 anos, fui atingido por uma jovem a quem pedi em namoro e ela respondeu: “Namoro? Imagine! você além de pobre é muito feio, mal vestido, é um nada.” Espere, sei a diferença entre este bullying juvenil, este desprezo e o racismo persistente, avassalador e estrutural. Sei o que é rejeição, ofensa, humilhação preconceito. Pense nisto acontecendo o tempo inteiro, a vida inteira, contigo, os teus, com quem está ao seu redor.
Acabo de ler uma biografia que me prendeu e foi devorada em um só dia, “Em Busca de Mim”, de Viola Davis. Ali você vê que ela passou a vida inteira, até ser o que hoje é, atriz consagrada de teatro e cinema, com Oscars, Emmys e reconhecimento mundial. Mas ficou sempre na alma dela a saída diária da escola na infância, os meninos brancos correndo atrás, gritando: “negra fedida, negra fedida”, e batendo, batendo.
Vi sua resposta Seu Jorge depois do show em Porto Alegre. De uma altivez e grandeza. Não respondeu ao ódio com ódio, com ferocidade, saltando na jugular. Não foi intolerante, cheio de animosidade, abominação, insensatez. Disse o quê? Que o povo gaúcho é bom. Disse o que sabemos.
Que o Rio Grande do Sul é um grande estado, tem mate, tem a uma tradição de cultura, de recebimento dos imigrantes, terra de vinhos, danças, grandes políticos e escritores como Érico Verissimo, Moacyr Scliar, Vianna Moog, Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Caio Fernando Abreu, Antonio Hohlfedt, Assis Brasil, Mário Quintana, Barbosa Lessa, Josué Guimarães. Teve atores como Paulo José, Walmor Chagas e uma infinidade.
Tem a maior e mais antiga Feira de Livros do Brasil. Sabia que o índice de leitura na região de Passo Fundo é o mais alto do país, graças as Jornadas bienais de Literatura realizadas por Tania Rösing por 40 anos e exterminadas com a política anticultural do atual presidente?
Seu vídeo, dito com rispidez, com raiva contida, trouxe afeto, me lembrou as fotos da Revolução dos Cravos em Portugal, com as pessoas, principalmente jovens, calando a boca dos fuzis da polícia e do exército com flores no 25 de abril de 1974 . Seu vídeo calou a estupidez de uma plateia que no fundo representa o Brasil rachado ao meio.
"Seu vídeo, dito com rispidez, com raiva contida, trouxe afeto, me lembrou as fotos da Revolução dos Cravos em Portugal, com as pessoas, principalmente jovens, calando a boca dos fuzis da polícia e do exército com flores no 25 de abril de 1974"
No meu mais recente romance, recém-publicado, “Deus, o que quer de nós?” mostro um Brasil que passou a recuar histórica, cultural, educacional, cientifica e, humanamente até chegar à pré-história. Metade de nós (segundo as pesquisas, amaldiçoadas por alguns) está na Idade da Pedra. No abriram-se as porteiras para os bois passarem, liberou-se a escrotidão, o cafajestismo, a impiedade e a impunidade. Vale tudo contra o outro.
O lado escroto do brasileiro revela-se em seu mais alto grau. As pessoas estão adorando ser escrotas, cruéis, violentas, infames. E em quem descarregam? Nos negros, nos indígenas, nas mulheres, nos pobres, nos esfomeados (fome não existe diz o Planalto), nos miseráveis (miséria não existe diz o “posto Ipiranga”), nos sem teto ou em situação de rua, nos analfabetos, nos desempregados. A saída, onde está a saída?
Seu Jorge, você nos ensinou como lutar naquele vídeo. É um homem, um ser humano ferido, cheio de dor, com raiva, humilhado, dilacerado, espezinhado, querendo ir à forra, cheio de mágoa, mas conservando a dignidade, a respeitabilidade e acima de tudo a humanidade. Isto que falta muito ao brasileiro hoje, a humanidade. A saída, onde está a saída? Perguntava uma peça do Teatro de Arena nos anos 60. Voltaremos a ser humanos? Civilizados? Dinossauros continuam a rondar."
*Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara em 1936. É membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras. Tem 49 livros publicados entre romances, contos, crônicas, infantis, viagens. Ganhou cinco prêmios Jabuti e é autor de clássicos como "Zero" (1974) e "Não Verás País Nenhum" (1981). Seu livro mais recentemente é "Deus o que quer de nós?" (Global, 2022)