As verdades que nos movem é uma espécie da currículo de Kamala Harris. Um documento, porém, que vai muito além das conquistas profissionais da candidata democrata à presidência dos Estados Unidos.
A autobiografia esmiúça a construção dos ideais e valores daquela que, a partir de 5 de novembro, pode ser tornar a primeira mulher a ocupar a Casa Branca. Uma mulher negra na disputa por um dos cargos mais poderosos do mundo.
Lançado em 2018, o livro estava esgotado. A nova edição, que chega agora ao Brasil, traz uma capa diferente — a foto de Kamala adulta foi substituída por uma de Kamala criança. A apresentação do livro também foi atualizada.
“Esta é a história da minha família. É a história da minha infância. É a história da vida que construí desde então. Vocês vão conhecer meus familiares e meus amigos, meus colegas e minha equipe. Espero que os apreciem tanto quanto eu e que, ao lerem minha história, vejam que eu não teria conquistado nada do que possuo hoje se estivesse sozinha”, afirma a autora.
Como a candidata faz questão de lembrar, seu nome, em sânscrito, significa "flor de lótus". “Um lótus cresce debaixo da água e a flor sobe até a superfície, enquanto as raízes estão firmes no fundo do rio”, explica Kamala. Uma metáfora para sua própria trajetória.
Kamala conta sobre sua vida até 2016, quando foi eleita senadora, com 7,5 milhões de votos — uma jornada que a preparou para ser vice de Joe Biden, em 2020, e para, aos 59 anos, concorrer ao pleito de agora.
Filha de imigrantes, a indiana Shyamala Gopalan, pesquisadora médica em oncologia, e o jamaicano David Harris, professor de economia na Universidade Stanford, Kamala cresceu em West Berkeley, comunidade pobre de Oakland, na Califórnia. Por causa dos pais ativistas, desde cedo, se engajou em movimentos de defesa dos direitos civis.
Com a mãe, aprendeu: "Não deixe ninguém dizer quem você é. É você quem diz a eles quem você é". E, ao longo de sua vida pública, Kamala vem dizendo ao mundo a que veio.
Formada em direito pela Universidade da Califórnia, foi eleita, em 2004, procuradora-geral da cidade de São Francisco. Em uma carreira meteórica, seis anos depois se tornou procuradora-geral do estado.
Nesse período, Kamala se firmou com uma das profissionais mais inovadoras na aplicação das leis americanas. E, assim, em 2016, ela chegou ao Senado. Em quatro anos, ela seria escolhida por Biden para ser sua vice na eleição contra Donald Trump e Mike Pence.
Kamala é uma defensora convicta da pacificação política e do diálogo. "Desde que a nossa nação é uma nação de imigrantes, somos uma nação que teme os imigrantes. O medo do outro está entrelaçado no tecido de nossa cultura americana, e pessoas inescrupulosas no poder exploraram esse medo em busca de vantagens políticas”, escreve a candidata, reforçando constantemente que a democracia e a Justiça não podem florescer em meio à indiferença, à apatia, ao pavor e à raiva.
No cargo de procuradora-geral da Califórnia, ela conta no livro de memórias, processou grandes bancos, companhias de petróleo e defendeu o Obamacare, programa do amigo Barack Obama, que garante assistência médica para pessoas de baixa renda e idosos, duramente atacado pelos adversários do então presidente.
Kamala brigou pelo aumento do salário mínimo, o ensino superior gratuito para a maioria dos cidadãos americanos, a proteção dos direitos de refugiados e imigrantes e a reforma o sistema de judicial, que ela julga “quebrado”.
“O trabalho de um promotor progressista é cuidar dos negligenciados, falar por aqueles cujas vozes não estão sendo ouvidas, ver e abordar as causas do crime, não apenas suas consequências, e lançar luz sobre a desigualdade e a injustiça que levam à injustiça.”
A partir dessa premissa, Kamala seguiu pautada pela certeza de que a luta contra o crime não comporta uma abordagem nem implacável nem extremamente flexível, mas, sim, inteligente.
“Você pode querer que a polícia pare o crime em sua vizinhança e também que eles parem de usar força excessiva. Você pode querer que eles cacem um assassino em suas ruas e também que parem de usar perfis raciais. Você pode acreditar na necessidade de consequências e responsabilidade, especialmente para criminosos graves, e também se opor ao encarceramento injusto”, discorre. “Eu acreditava que era essencial tecer todas essas vertentes variadas.”
Para ilustrar como as inequidades estão na base das injustiças sociais e econômicas, Kamala recorre ao racismo. Os homens negros, por exemplo, usam drogas na mesma proporção que os brancos, mas são presos duas vezes mais por isso. E então eles pagam, em média, cerca de um terço a mais em fiança, argumenta.
“Os homens negros têm seis vezes mais chances de serem encarcerados do que os homens brancos. E quando são condenados, os homens negros recebem sentenças quase 20% mais longas do que as dadas aos seus colegas brancos. Homens latinos não se saem muito melhor. É realmente terrível", escreve.
A candidata democrata sabe que "quando você rompe um teto de vidro, você vai se cortar e vai doer". Mas não tem outro jeito a não ser seguir em frente, na defesa de seus ideais. “Daqui a alguns anos, nossos filhos e netos olharão para cima e nos olharão. Eles nos perguntarão onde estávamos quando as apostas eram tão altas. Eles vão nos perguntar como foi. Não quero que apenas digamos a eles como nos sentimos. Quero que digamos a eles o que fizemos."
Assim, com base nas palavras de Coretta Scott King (1927-2006), escritora e ativista pela igualdade de direitos dos negros e das mulheres, Kamala lembra que a liberdade deve ser conquistada por todas as gerações. "É da própria natureza dessa luta pelos direitos civis, justiça e igualdade que, quaisquer que sejam os ganhos que obtenhamos, eles não serão permanentes. Portanto, devemos estar vigilantes."