LONDRES - Desde a crise financeira de 2008, a impressão ocidental de que a interferência do Estado na economia deveria ser reduzida ao máximo vinha sendo colocada em xeque. Com o mundo de cabeça para baixo face à pandemia de coronavírus, a infindável guerra da ucrânia e as emergências climáticas, o clamor pela volta de governos mais robustos e intervencionistas voltou a ser uma demanda tanto da esquerda quanto da direita.
Esse é o raciocínio que baseia o livro O Grande Recuo: a política pós-populismo e pós-pandemia. Lançado em português pela editora Todavia (R$ 104,90 versão física, R$ 39,90 e-book), a obra do sociólogo italiano Paolo Gerbaudo traz uma análise política detalhada sobre superação do projeto neoliberal frente a crise sanitária do coronavírus.
Gerbaudo dirige o Centro de Cultura Digital do King’s College de Londres, e também é autor de obras como Redes e ruas, The Mask and the Flag e The Digital Party (sem tradução do Brasil). Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, o sociólogo traça um futuro onde Estados Intervencionistas serão cada vez mais decisivos para proteger as economias e os mercados.
“Estamos em um momento em que o pêndulo da história gira em torno dos Estado e dos sistemas econômicos organizados nacional e regionalmente”, afirma. O autor diz que a globalização neoliberal como conhecemos no passado está vivendo um grande recuo, com países voltando-se novamente para si próprios, numa espécie de neoestatismo que se manifesta em todos os espectros políticos e ideológicos.
Na conversa, Gerbaudo também comenta questões atuais da política brasileira e dá palpites. “Acredito que se o governo Lula seguir uma agenda intervencionista racional, toda a economia, incluindo a maioria das empresas privadas, será beneficiada.” Confira a entrevista completa:
Por que você acredita que estamos vivendo um momento de ‘grande recuo’ na globalização neoliberal?
Desde a crise financeira de 2008, indicadores da globalização, como o comércio global e o investimento estrangeiro direto, se estabilizaram ou recuaram. Muitos países estão implementando medidas protecionistas e introduzindo subsídios estatais destinados a melhorar sua posição, especialmente em áreas estratégicas como tecnologia. Isso significa que a globalização, que era considerada uma força imparável, agora está batendo em seus próprios limites, pois não há mais mercados externos para abrir ao comércio. Estamos em um momento semelhante ao descrito por Karl Polanyi em “A Grande Transformação”, em que o pêndulo da história gira em torno dos Estados e dos sistemas econômicos organizados nacional e regionalmente.
As crises geradas pela pandemia, pela guerra da Rússia e pelo aquecimento global emergente mudaram a chave ideológica dos que pregavam intervenção mínima do Estado há algumas décadas?
No auge da globalização, a impressão compartilhada entre as elites políticas e empresariais era que a interferência do Estado deveria ser progressivamente reduzida. No entanto, os mercados só podem existir graças à intervenção dos governos. Isso ficou claro após o crash de 2008, quando os governos correram para socorrer as empresas. A pandemia, a guerra na Ucrânia e o aquecimento global tornaram ainda mais evidente a necessidade de intervenção. Pense na União Europeia, onde os países estão tentando transformar seus sistemas de energia para torná-los menos dependentes do petróleo e gás russo, ou nos planos climáticos que governos estão implementando para preparar seus países para as mudança climáticas. É cada vez mais aceito no mainstream político que existem áreas que a intervenção do estado é necessária.
No livro, o senhor fala sobre um “estado empreiteiro”, dando o exemplo do governo Biden financiando grandes obras públicas realizadas por empresas privadas para fortalecer o capital financeiro. Esses arranjos demonstram que o Estado e o Capital fizeram as pazes?
Todo país existe sob uma economia mista, na qual a economia pública e a economia privada coexistem. A questão é a configuração dessa relação. Sob o estado neoliberal, a mercantilização e a lógica de mercado invadiram os serviços públicos que eram considerados como reserva da economia pública. Por outro lado, os governos abandonaram muitas áreas de intervenção do Estado. Agora, vemos tentativas de transformar o funcionamento do capitalismo por meio de um grau mais forte de intervenção do Estado na economia, semelhante ao do Estado desenvolvimentista de algumas décadas atrás, onde a intervenção ativa do Estado era crucial na construção de sistemas industriais avançados.
"A globalização, que era considerada uma força imparável, agora está batendo em seus próprios limites, pois não há mais mercados externos para abrir ao comércio"
É possível cravar que o futuro do capitalismo será desenhado por Estados mais fortes, robustos e prontos para atender as demandas do mercado?
Os países mais bem-sucedidos são aqueles em que, direta ou indiretamente, o estado intervém fortemente na economia. Os EUA, considerado o país onde triunfam as forças de mercado, sempre tiveram um forte nível de intervenção indireta do Estado através das despesas de defesa. O iPhone, visto como um símbolo do poder do mercado, só foi possível graças a pesquisas financiadas pelo Estado. No caso da China, o governo controla a economia por meio de empresas estatais que mantêm todos os pontos estratégicos da economia. A verdadeira disputa não é entre alternativas opostas, como mercado completamente livre ou completamente controlado pelo estado. Torna-se cada vez mais evidente que a intervenção do Estado sempre existe, e que os países que a ela renunciaram terão menor desempenho econômico.
Estados protagonistas são uma demanda histórica da esquerda, mas como esse protagonismo estatal beneficia também a direita?
O intervencionismo estatal não é apenas um monopólio da esquerda: ele também chegou à direita na forma de paternalismo e protecionismo comercial. A essência do meu livro é que o retorno do Estado muda as regras do jogo tanto para a esquerda quanto para a direita, redefinindo como o consenso político é disputado. Agora todas as forças têm que responder à questão de que tipo de intervenção do Estado desejam prosseguir.
A passagem do neoliberalismo para outro arranjo com maior participação do Estado garante que questões como seguridade social e proteção ambiental ganharão mais espaço no debate público?
Estamos vendo uma maior preocupação com as mudanças climáticas e a desigualdade econômica. Essas questões costumavam ser menos importantes na agenda pública, mas agora estão no topo da lista de prioridades. Mesmo assim, o debate não implica necessariamente em uma resposta automática a essas questões. Uma presença mais forte do Estado não obrigatoriamente se traduz em redistribuição. O mesmo se aplica às alterações climáticas.
"Torna-se cada vez mais evidente que a intervenção do Estado sempre existe, e que os países que a ela renunciaram terão menor desempenho econômico"
O Grande Recuo vislumbra um futuro que o senhor chama de neoestatismo. Como o neoestatismo se manifesta no espectro da direita e esquerda?
Na esquerda, o neoestatismo vem na forma de uma política voltada para reafirmar o controle do estado sobre a política industrial, reparar o estado de bem-estar e fornecer proteção aos cidadãos contra eventos ambientais adversos. Já na direita, o que está em jogo é um protecionismo proprietário: a ideia é que o que está em perigo é a propriedade, vista como o pilar necessário da liberdade das pessoas.
Nos últimos anos, lideranças de esquerda voltaram a conquistar terreno na América Latina, incluindo o Brasil, que elegeu o presidente Lula. Qual é o modelo de neoestatismo que se pode esperar desses novos governos de esquerda em relação ao passado?
Já se falava em neoestatismo na América Latina dos anos 2000 diante da vitória de figuras como Chávez na Venezuela, Nestor Kirchner na Argentina, Lula no Brasil, Correa no Equador e Morales no Bolívia. Agora, mais uma vez, se fala em um retorno ao neoestatismo diante da nova onda de vitórias da esquerda na região. No centro do neoestatismo dos anos 2000 estava a questão da justiça econômica e social e a luta contra a pobreza. Para construir uma América Latina socialmente justa será necessário voltar a esta ideia do “estado arquiteto” como um transformador ativo do sistema econômico.
No caso brasileiro, os operadores do mercado temem que o governo Lula seja demasiadamente intervencionista. É possível equilibrar essa balança?
É compreensível que as forças do mercado tenham medo, e deve-se sempre ter em mente que o que é bom para o mercado financeiro não necessariamente é bom para a economia real como um todo. No Brasil, a desigualdade é um obstáculo de longo prazo para o crescimento econômico, porque se as pessoas comuns não tiverem dinheiro para gastar, as empresas também sofrerão. Acredito que se o governo Lula seguir uma agenda intervencionista racional, toda a economia, incluindo a maioria das empresas privadas, será beneficiada.
Tanto Biden quanto Lula evocam a palavra “reconstrução” para justificar uma maior participação do estado nas economias. Por que essa palavra está na moda entre lideranças mundiais, o que há por trás dela?
A palavra reconstrução está se tornando moda no discurso político porque, em grande medida, a era neoliberal foi um longo período de demolição de estruturas de apoio que garantem o bem-estar da economia. Precisamos de reconstrução em todos os níveis: social, ambiental e democrático. O recente ataque ao Congresso e às instituições brasileiras é um triste lembrete de quão baixo caiu a autoridade do Estado. As sociedades precisam recuperar urgentemente o sentido do Estado como lugar de participação política, onde o povo decide coletivamente seu destino e a sociedade projeta seu futuro político e econômico.