Com uma caixa de lenços de papel, Mariana Clark quer fazer uma revolução. Aos 48 anos, dona de um MBA em gestão de recursos humanos, a psicóloga carioca está levando a revolução do cuidado para dentro das empresas — a oferta dos lenços como símbolo do acolhimento da dor do outro; o convite para um espaço coletivo de compartilhamento das emoções e sentimentos.
Mas nem sempre foi assim. Em 18 anos como executiva de RH em grandes companhias, como Natura e Rede Globo, ela estendia a caixa de lenços para o colaborador enxugar as lágrimas e voltar ao trabalho como se nada tivesse acontecido. Apesar de comum no dia a dia das organizações, aquela atitude não condizia com a sua ideia de cuidado. Afinal, o choro pode até ser engolido, mas a angústia continua ali.
Em 2018, a psicóloga decidiu que era hora de sair do mundo corporativo para voltar a ele como uma espécie de “porta-voz” das dores que, no escritório, aprendemos a não sentir. E, hoje, ela se dedica a fazer o letramento emocional e a capacitação de lideranças para a promoção da saúde emocional e sustentabilidade dos negócios.
Sim, sustentabilidade dos negócios… e é isso que torna a abordagem de Mariana diferente. Um trabalho de redução de riscos para as empresas.
A covid-19 virou o mundo do trabalho do avesso e derrubou a crença de que falar sobre sofrimento emocional é um entrave à competição, produtividade e lucro.
“No pós-pandemia, as estatísticas de adoecimento triplicaram”, diz Mariana. “Enquanto sociedade, já entramos muito doentes na pandemia. E agora vem um descortinar… está todo mundo caindo.”
Em seu primeiro livro, o recém-lançado Lutos corporativos — Como lidar com a dor e o sofrimento de colaboradores e manter o bom desempenho na sua empresa, ela agora mostra, com casos reais, as várias possibilidades de acolhimento.
O título está no plural porque o sentimento de luto não é exclusividade da morte, manifestando-se também no divórcio, expatriação, síndrome do ninho vazio, diagnóstico grave, demissão… E, quando sufocado, ele adoece quem sofre, mas também a equipe e até os negócios.
“Dor compartilhada é dor diminuída”, a psicóloga costuma dizer. E, mesmo em um ambiente potencializador de medos e inseguranças, como é o corporativo, é possível aliviar a pressão.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista de Mariana Clark ao NeoFeed:
Como age o “líder cuidador” ao qual você se refere no livro?
Se uma criança está brincando no parquinho e se machuca, ela corre para os braços do cuidador — seja a mãe, o pai, a avó, a babá… não importa. E o que fazemos? Acolhemos, colocamos no colo, assopramos o machucado e damos um beijinho. Com isso, a criança vai se organizando… respira, para de chorar, vê que não é nada grave, que vai ficar tudo bem e volta a brincar. Quanto mais eu puder acolhê-la em sua dor, mais segura ela vai explorar a vida. É esse o paralelo que eu faço com a liderança. Quando eu acolho a pessoa na hora em que ela está precisando, ela vai para o mundo muito mais fortalecida e muito mais segura para trazer resultados.
Fico com a impressão de que, para ser um bom líder, é quase obrigatório fazer análise ou terapia.
É obrigatório da vida, né? Quando nos conhecemos, não colocamos na conta do outro. É um processo constante de autocrítica interna. Você tem mais capacidade de falar sobre seus limites, a forma como você opera no mundo… seus barulhos, inseguranças e medos. Com isso, evoluímos não só do ponto de vista pessoal, mas também do ponto de vista do exercício da liderança.
E como os líderes reagem quando tomam consciência do que é oferecer cuidado?
Recentemente, eu estava acompanhando um grupo de gerentes seniores. No segundo dia da capacitação de liderança, um deles, um engenheiro, levantou a mão: “Isso é muito difícil para mim. Eu não sei se vou dar conta”. Ficou aquele silêncio. E eu deixei aquele silêncio incomodar bastante até que falei para ele: “Você é o único com quem eu não me preocupo. Você entendeu o tamanho da sua responsabilidade”. Não é fácil, eu sei.
"Você não pode ser só o líder que oferece a caixa de lenços. Mas você também não precisa ser só o líder que cobra resultados"
Ao se fazer cuidador, o líder não perde a autoridade?
Ótima pergunta. Em minha opinião, acontece o contrário. Quando um líder estende a mão a um colaborador no momento em que ele precisa, esse funcionário depois tende a pensar: “Meu chefe é tão incrível que eu não posso decepcioná-lo". Acolher a pessoa em momento de disfuncionalidade não tira do líder a necessidade de ser assertivo, firme e corajoso para puxar quando ele tiver de puxar para chegar a resultados e metas. Uma coisa não exclui a outra. Você não pode ser só o líder que oferece a caixa de lenços. Mas você também não precisa ser só o líder que cobra resultados e metas a qualquer custo. O grande desafio da liderança é navegar nesses dois polos… o tempo todo esse estica e puxa.
E qual é a medida desse “estica e puxa”?
Eu não tenho a resposta. Cada caso é um caso. Para algumas pessoas, o trabalho ajuda na reorganização. Outras, porém, precisam se encaramujar em suas dores. Talvez elas precisem trabalhar de casa por um período. É importante a liderança mostrar para o time que ali é um espaço seguro. Um ambiente onde as pessoas podem ser mais ou menos como elas são — “mais ou menos” porque a gente nunca fala que na empresa dá para ser quem a gente é 100%.
Quando o time pode expressar suas emoções, ele se torna mais produtivo?
É óbvio, né? As equipes de alta performance mostram isso o tempo todo. As pessoas sabem que ali é um espaço onde elas podem errar e tudo bem; onde elas podem perguntar sem medo de perguntar. Um lugar onde podem explorar sua potência, sair em busca de novos resultados, de novas respostas para problemas antigos… Um espaço assim traz diversidade, inclusão e inovação.
Mas não dá para ficar levando problemas pessoais o tempo todo para o trabalho.
Costumam me perguntar o que fazer quando se percebe que alguém está se aproveitando. É uma conversa difícil: “Estou vendo que você está com um problema e não estou percebendo uma postura ativa sua frente a esse problema”. É preciso deixar claro até onde a empresa pode ir — “Fizemos tudo o que podíamos como empresa, a partir de agora você vai ter de ter uma postura ativa frente aos desafios que a vida está te apresentando”. Uma, duas, três, quatro vezes… na quinta, talvez seja o caso de demissão.
"A humanidade de um líder autoriza o sentimento em todos"
Aliás, a demissão é um processo muito desgastante emocionalmente para o demitido, claro, mas também para quem demite.
É horrível, horrível. Quem tem responsabilidade passa mal. A qualidade do cuidado em um processo de demissão vai fazer diferença no processo de luto pela demissão.
Como deve ser esse cuidado?
É carne viva, mas é preciso ser um pouco frio nessa hora. É preciso se organizar, planejar, cuidar das palavras e considerar a pessoa que está indo embora. Entenda que você está devolvendo para a sociedade uma pessoa que pode ficar doente. Responsabilize-se por isso. Acabei de ser chamada para acompanhar o processo de reestruturação de uma empresa, no qual 26 pessoas serão demitidas. Nesse caso, a empresa está oferecendo um pacote de recolocação, três meses de plano de saúde… Está “lindo” [Mariana reforça as aspas]. Estamos tentando reduzir o dano. O que não pode é demitir por e-mail. Não dá para desconsiderar as pessoas assim.
Li que aumenta a prática do wellbeing washing, quando a empresa promove uma imagem de cuidado com a saúde e bem-estar de seus funcionários, mas, na prática, não implementa políticas concretas que sustentem essa promessa.
A maioria dos programas corporativos de saúde e bem-estar considera que, para estar saudável, basta fazer exercícios físicos e se alimentar bem. Não, isso não basta. Saúde mental não é o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. É desenvolver recursos emocionais para gerenciar o estresse e os desafios impostos pelo trabalho e pela vida. A pressão por metas e resultados é intrínseca ao ambiente de trabalho e a gente não consegue mudar. Eu não falo nem em mudar a cultura de uma empresa… seria muita pretensão minha. A cultura é consequência; efeito colateral.
Como assim?
As pessoas precisam ser autorizadas a olhar para suas dores e para as dores do outro. Eu bebo muito na fonte do capitalismo consciente. Se eu toco diretamente as pessoas que trabalham comigo, essas pessoas vão tocar outras pessoas… e isso chega na casa delas, nos stakeholders… Do contrário, colocamos tudo debaixo do tapete e engolimos o choro. As empresas são uma grande potência para a sociedade melhorar esse ponteiro [da saúde mental].
No livro, você fala sobre a importância de nos responsabilizarmos por nossas questões. A empresa pode curar nossas dores?
Não tem como. A cura é multidisciplinar. O que eu faço é reduzir danos. Eu ajudo a liderança a entender que, se um colaborador é obrigado a esconder sua dor, ele vai trabalhar pela metade. Mas, digo que é proibido a gente se nutrir exclusivamente de trabalho. O trabalho nos entrega muita coisa — nos realiza; paga as nossas contas; organiza nossa rotina; traz uma previsibilidade nesse mundo doido; com sorte, nos traz amigos e, para quem gosta do que faz, é gratificante do ponto de vista cognitivo. Agora, tem uma parte existencial íntima que o trabalho não vai fazer por nós. A empresa nem tem essa competência.
Os líderes devem expressar suas emoções para a equipe?
Recentemente, ouvi de um líder: “Estou há dois anos acompanhando meu filho em depressão, na terceira tentativa de suicídio. E eu venho trabalhar como se nada estivesse acontecendo por medo de perder o emprego”. Como assim? Alguns líderes, por exemplo, se orgulham de ficar dois, três, cinco anos sem férias. E a equipe, como é que fica? Quando uma pessoa sair de férias, ela vai se sentir muito mal. A humanidade de um líder autoriza o sentimento em todos.