A Argentina atravessa uma crise com desvalorização de sua moeda, uma rotina de consumo ancorada no dólar blue, dança de ministros da economia, dívida bruta de mais de 80% do PIB e projeções indicam que a inflação acumulada no país chegará a 90% até o final do ano.
Mas, ao mesmo tempo, parte da população mais resguardada dos efeitos da crise continua a consumir e, mesmo quem nem tem tanto colchão assim, usa seus pesos antes que eles derretam ainda mais. É neste cenário contraditório que a gastronomia tem mostrado sua força, em especial em Buenos Aires, porta de entrada dos turistas no país.
A capital argentina tinha como meta receber 4 milhões de turistas domésticos e 1,2 milhão de turistas internacionais este ano. No primeiro semestre, recebeu mais de 2,1 milhões de argentinos e 590 mil estrangeiros. Estes últimos injetaram US$ 480 milhões na economia local no período. E a cidade vem apostando na gastronomia para tentar resistir à crise econômica e atrair mais turistas - inclusive brasileiros.
Ainda em 2016 foi criado um departamento específico para tentar tornar Buenos Aires uma "capital gastronômica" aos olhos do turista internacional. A pandemia postergou, contudo, o resultado desta frente. "O programa BA Capital Gastronómica quer potencializar a atividade econômica em geral através do desenvolvimento gastronômico da cidade", define Héctor Gatto, subsecretário de políticas gastronômicas de Buenos Aires.
Segundo a UTHGRA (União dos Trabalhadores do Turismo, Hotelaria e Gastronomia da República Argentina), o setor gastronômico é o maior empregador por metro quadrado da cidade de Buenos Aires, oferecendo cerca de 80 mil postos de trabalho. Daí sua importância estratégica.
Com a reabertura completa do país para o turismo (desde agosto passado, não existe mais nenhum requisito ou restrição para entrada na Argentina), o programa está mais ativo do que nunca.
Um dos eventos de maior repercussão, por exemplo, foi o Campeonato del Asado realizado em agosto passado, que reuniu mais de meio milhão de pessoas, contou com participantes de todas as 23 províncias do país e reuniu 50 "stands" de restaurantes argentinos para degustação. O programa fomenta também iniciativas privadas ligadas à gastronomia que podem impulsionar a economia local e promove estudos e avaliações para sugerir alocação de verba para renovações.
Uma das estratégias tem sido a reconfiguração dos mercados em polos gastronômicos. “Investimos na renovação de mercados antigos, como San Nicolás, Belgrano e Bondpland, e em novas aberturas, como Mercado de los Carruajes, Mercat, Mercado Soho e Base”, explica Gatto.
O tradicional Mercado de Belgrano, no bairro homônimo, por exemplo, está de volta. Após permanecer três décadas praticamente abandonado, passou por uma grande reforma ao longo de cinco anos e hoje oferece 45 estabelecimentos gastronômicos diferentes, de peixaria a restaurantes. Funcionando todos os dias, ganhou dois bem-vindos espaços ao ar livre e promove aulas abertas de culinária em sua praça central.
Buenos Aires também acaba de inaugurar o Mercado de Los Carruajes, que já é sucesso entre moradores e turistas em pleno centro da cidade. Rodeado por diversos escritórios comerciais, fica literalmente lotado no horário do almoço.
O novo mercado reergueu um edifício de 1900, que é Patrimônio Histórico porteño e também passou anos abandonado, seguindo o modelo dos bem-sucedidos mercados de Madri. São 4,2 mil m² (com direito a vitrais originais e um belo terraço ao ar livre) tomados por opções gastronômicas de todo tipo - incluindo restaurantes, bares, lanchonetes, cafeterias e até a primeira filial da tradicional chocolateria espanhola San Ginés nas Américas.
Novos restaurantes em plena pandemia
Se, por um lado, o poder de compra do argentino diminui a cada mês, por outro, assim como no Brasil, os restaurantes mais badalados da cidade seguem cheios até numa noite de terça-feira. Frequentados, tanto por por porteños como turistas, que ajudam a sustentar essa resistência econômica através da boa mesa. "Sabemos que a gastronomia é uma das maiores forças da cidade. Afinal, proporciona desenvolvimento econômico, gera empregos e atrai turistas nacionais e internacionais", define Héctor Gatto.
Apesar de o real enfrentar a maior desvalorização de sua história, a moeda argentina enfraqueceu bem mais frente ao dólar. Hoje, comer um bom corte de carne em Buenos Aires, por exemplo, chega a custar a metade do preço de prato semelhante em São Paulo.
Na casa de carnes do clássico Don Julio, considerado um dos 50 melhores restaurantes do mundo, 500g de ojo de bife valem cerca de R$ 45,00. No badalado e moderninho restaurante La Carnicería, o prato “Corte Parilla”, muito bem servido com ojo de bife, bife de chorizo, abóbora e chimichurri custa aproximadamente R$ 84,00.
Embora o foco do programa "BA Capital Gastronómica" se concentre em mercados, feiras e eventos, a valorização da gastronomia local aos olhos do turista e do morador ajuda a fortalecer também negócios privados do setor na cidade. "Buenos Aires tem uma oferta muito grande de restaurantes. A promoção para o turista tem que ser conjunta, com lugares nos quais se possa comer bem com boa hospitalidade, uma experiência completa", diz o empresário argentino Germán Sitz.
Ele e o colombiano Pedro Peña já somam seis restaurantes na cidade e tentam seguir esse conceito. Donos dos já consagrados La Carnicería, Niño Gordo e Chori, inauguraram durante a pandemia o espanhol Paquito e a taqueria Juan Pedro Caballero Chuntaro Style (todos na badalada calle Thames, em Palermo), além do El Dorado, em Puerto Madero. "Acreditamos que ainda há necessidade de gerar uma rede gastronômica mais forte regionalmente para que se torne um tecido e não lugares individuais", completa Sitz.
Em Palermo, celeiro de novidades gastronômicas na cidade, foram inaugurados recentemente diversos outros restaurantes (com destaque para o impecável Mercado de Liniers, que serve apenas menus degustação combinando sabores da terra e do mar), além de novos bares e cafés (como os ótimos Las Flores, Dalchemist e Moshu). Todos frequentemente cheios.