Criador de obras-primas como Taxi Driver, Touro Indomável e Os Infiltrados, o cineasta Martin Scorcese não mediu as palavras. Em 2019, foi direto ao ponto: a Marvel Studios nunca fez cinema.
“Honestamente, o mais próximo em que consigo pensar — por mais bem-feitos que sejam, com os atores fazendo o melhor que podem nas devidas circunstâncias — é em parques temáticos”, disse.
Seu colega Francis Ford Coppola, da consagrada trilogia O Poderoso Chefão, foi ainda mais longe. Definiu os filmes de super-heróis como “desprezíveis”.
E, arrematou, com desdém: “O que é um filme da Marvel? Um filme da Marvel é um protótipo produzido uma vez após a outra, e outra, e outra, a fim de parecer diferente”.
Os fãs do estúdio, claro, reagiram com veemência. Para eles, a luta do Homem-Aranha, do Capitão América ou da Viúva Negra para salvar a humanidade de vilões terríveis sempre foi (e sempre será) arte.
Polêmicas à parte, um dado é certo: nos últimos 25 anos, a indústria do cinema passou por uma transformação radical e, em grande parte, por causa da Marvel.
O Universo Cinematográfico Marvel (UCM) é o maior fenômeno cultural da contemporaneidade e um dos negócios mais lucrativos do planeta.
Oito de seus filmes ultrapassaram US$ 1,2 bilhão em bilheterias e dois superaram US$ 2 bilhões. Vingadores: Ultimato, de 2019, bateu US$ 2,79 bilhões.
E, como isso aconteceu é tão fascinante como algumas das melhores revistas em quadrinhos e pode ser conferido agora no livro O reinado da Marvel Studios - A história de como o UCM se tornou um dos maiores fenômenos culturais do nosso tempo, a ser lançado este mês no Brasil, pela editora Best Business.
Escrita a seis mãos por Joanna Robinson, Dave Gonzales e Gavin Edwards, a obra narra a história não autorizada dos bastidores da impressionante ascensão de uma empresa, um caso raro de virada rápida de mesa.
Empréstimo em Wall Street
Há menos de 20 anos, a Marvel Entertainment era apenas uma fabricante de brinquedos, tentando escapar da falência.
A empresa havia sido comprada pela Disney, em 2009, por US$ 4 bilhões. E filmes como X-Men e Homem-Aranha, dizem os autores, foram idealizados apenas e tão somente para vender artigos inspirados em super-heróis.
Logo, porém, os longas se transformaram em algo muito maior. A mina de ouro não estavam em bonecos, carrinhos ou fantasias, mas nas bilheterias.
O hiper-realismo de produções altamente tecnológicas arrebatou espectadores do mundo todo e fez com que a Marvel produzisse uma das maiores franquias da história do cinema, com lucro direto da venda de ingressos.
O protagonista desta história é Kevin Feige, o presidente da Marvel Studios. Ele não havia completado 40 anos, quando tudo começou. Os bastidores mostram uma jogada arriscada de negócio sob seu comando.
Para evitar a falência, ele penhorou os direitos de seus próprios personagens, de modo a garantir uma linha de crédito com um banco de Wall Street.
O estúdio apostara todas as suas fichas nesse empréstimo, para financiar os primeiros filmes. Os autores contam que, a noite de 21 de abril de 2012, após a première italiana de Os Vingadores, serviria de termômetro para o que estava por vir.
Aos 38 anos, Feige não se comportava como chefe de um estúdio de Hollywood, nem como um veterano de sangrentas batalhas corporativas internas, já considerado um dos produtores mais bem-sucedidos de sua geração.
Ele parecia mais um fã, ganhador de um concurso do tipo “Jantar com os Vingadores”. Suas falas naquele jantar em Roma, porém, deram a dimensão da determinação do executivo. “Teremos 15 produções nos próximos dois anos”, disse o executivo. O ator Mark Ruffalo, intérprete de Hulk, lembra no livro: “Fiquei pasmo. Pensei: ‘Esse cara não está de brincadeira”.
E não estava mesmo. “Sempre presumo que as pessoas acham que só falo por falar, como muitos no ramo. Historicamente, 99% do que qualquer um diz em Hollywood acaba não se concretizando", prosseguiu Feige. "Penso nisso sempre que tento vender uma ideia. Fico pensando: ‘Bom, você provavelmente acha que isso é como 99% das conversas em Hollywood, mas realmente vamos fazer.”
Estilo próprio
De fato, Feige e sua equipe cumpririam quase todas as promessas daquela noite em Roma. Em abril de 2023, quando o livro foi concluíd0, a Marvel tinha produzido 31 longas, com um faturamento global de mais de US$ 28 bilhões. Era a mais bem-sucedida série cinematográfica de todos os tempos, seguida de Star Wars, com 20 filmes e faturamento total de US$ 10,3 bilhões.
Toda essa história de sucesso é contada de forma empolgante em O reinado da Marvel Studios. O ponto de partida são os anos de 1960, quando o lendário escritor e editor Stan Lee (1922-2018) deu início a uma revolução nas histórias em quadrinhos. Ao humanizar os super-heróis, deixou para trás a concorrente DC.
O livro percorre as décadas de 1970 e 1980, ocasião dos primeiros flertes com o cinema. Mas, naquela época, não havia tecnologia capaz de arrebatar o público em definitivo.
Na primeira década do século 21, porém, o UCM foi concebido. E, graças aos avanços das ferramentas audiovisuais, logo se transformou em sinônimo de filmes de super-herói. “Mesmo enquanto redefinia o gênero à sua própria imagem e realizava um controle de qualidade agressivo, o estúdio se assegurava de surpreender a plateia”, escrevem Joanna, Gonzales e Edwards.
Segundo os autores, a Marvel Studios cresceu ao combinar a cultura de improviso e bootstrapping das startups do Vale do Silício com uma versão moderna do modo de operar dos estúdios.
Suas lideranças tiveram a astúcia de assinar contratos de longo prazo com os atores, cultivaram os próprios grupos de escritores e atraíram um pequeno exército de artistas visuais que, às vezes, determinavam a estética dos filmes, antes mesmo de o diretor ser contratado.
A única coisa que a empresa não tinha, quando comparada aos antigos colossos da indústria cinematográfica, era seu próprio sistema de distribuição. Foi aí que entrou a Disney.
O estúdio refutou o senso comum sobre o que um super-herói é e pode ser. Desse modo, forjou seu próprio estilo, tanto nos filmes quanto nos métodos para produzi-los.
Mas, até quando?
Bilheterias fracas
Nas estreias mais recentes, desde 2022, os únicos títulos com algum sucesso de bilheteria, foram Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, de 2022, e Guardiões da Galáxia Vol. 3, de 2023. Nenhum deles, no entanto, atingiu a marca do bilhão de dólares,
Também do ano passado, As Marvels teve a pior bilheteria de estreia do estúdio, com US$ 47 milhões nos Estados Unidos. Até meados de dezembro, o filme havia feito pouco mais de US$ 200 milhões, no mundo.
Para cobrir os gastos de produção, porém, deveria arrecadar US$ 700 milhões, conforme análises de mercado.
Em cartaz há duas semanas, Madame Teia, com Dakota Johnson, no papel principal, tem sofrido críticas implacáveis pela falta de zelo em todos os pontos da produção –do roteiro e direção à interpretação do elenco.
Para alguns especialistas, a Marvel Studios está apenas passando por um momento ruim. Para outros, no entanto, a crise reflete o cansaço do público com uma fórmula já gasta.
O jornal americano The New York Times definiu a fase atual como a da "obsolescência inevitável". Como Feige e seu exército sairão dessa, certamente, renderá outras ótimas histórias. Aguardemos os próximos capítulos.