Ele era ainda adolescente quando o pai lhe disse: “Você vai acabar empurrando carroça e catando lixo”. A intenção era fazê-lo desistir, mas não funcionou. Ao contrário. A profecia paterna lhe serviu de combustível. E o jovem partiu com ainda mais gana rumo ao futuro.

Não foi fácil. Afinal, nos anos 1980, o surfe era “coisa de vagabundo e maconheiro”. Mas o pernambucano Carlos Burle chegou lá. E ele fez muito mais do que mostrar ao pai o quão enganado ele estava sobre o filho. Bicampeão mundial de ondas gigantes, fez muito mais do que levar seu nome (e o de sua família) à consagração.

Em mais de três décadas de carreira, o big rider ajudou a transformar o surfe brasileiro em esporte profissional — respeitado e admirado. Ele, por exemplo, foi um dos pioneiros da modalidade tow-in, na qual o surfista é rebocado por um jet-ski para dentro da onda.

Da década de 1990, a técnica foi uma das inovações mais importantes do surfe — de todos os tempos. Ela permitiu aos atletas pegar ondas superiores a quinze, dezoito metros, o que era inimaginável até então. Sem o tow-in, o surfe de ondas gigantes do modo como o conhecemos hoje não existiria.

Apesar da influência de Burle na modalidade, seus dois títulos mundiais foram conquistados na remada. O primeiro aconteceu na Baía de Todos os Santos, no México, em 1998, no qual ele sagrou-se campeão ao deslizar pela temida Killers. Um marco na história do surfe do Brasil.

“Ali nós quebramos um paradigma”, lembra Burle, em conversa com o NeoFeed. A partir daquele momento, a pecha de “maroleiros” nunca mais adjetivaria os brasileiros. Ao dominar a Killers, ele provou que os nossos surfistas são, sim, das ondas gigantes.

Aqui, uma curiosidade: com o primeiro título mundial, Burle começou a ser chamado para dar palestras em escolas. E o que ele fez? Contratou uma fonoaudióloga. Quem disse que surfista não sabe falar? Mais um estereótipo derrubado.

Três anos depois, em 21 de novembro, em Mavericks, na Califórnia, ao pegar uma onda de 22,6 metros, Burle registrou seu nome no Guiness Book como o surfista a descer, àquela época, a maior onda surfada do mundo. Mais do que qualquer título ou troféu, porém, ele se orgulha mesmo é de ter ajudado a abrir caminho para os surfistas que viriam a seguir.

Se hoje o grupo de brasileiros da elite do esporte é conhecido como Brazilian Storm, é porque ele e outros atletas de sua geração mostraram que era possível alçar voos mais altos. Xô, marola! Que venha a tempestade.

Desde cedo, Burle entendeu que o surfe exigiria dele domínio total sobre seu corpo e sua mente, sobretudo autoconhecimento. O foco e a determinação lhe permitiram surfar profissionalmente até os 50 anos.

"O surfe ensina a olhar para o horizonte e pensar: 'Tem esperança, vai dar certo… um dia tua onda vai chegar", conta o surfista (Foto: Divulgação)

Aos 12 anos, a surfista e skatista carioca Brenda Moura, pupila de Burle, é a primeira entrevistada do "Brava.Mente" (Foto: Divulgação)

Burle foi fundamental para a profissionalização do surfe brasileiro (Foto: Divulgação)

Burle levou o empresário André Bartelle, do grupo Vulcabras e um dos convidados do podcast, para surfar em Nazaré (Foto: Divulgação)

"Se você me perguntar qual é a palavra que me define, eu direi “intensidade”. O que me salvou foi esse negócio de querer me conhecer", conta Burle (Foto: Divulgação)

Antonio Moreira, CEO do grupo Trigo, dono das marcas Spoleto, China in Box e Gendai, também está na primeira temporada do "Brava.Mente" (Foto: Divulgação)

"A pessoa que procura o autoconhecimento evolui. Vai buscar o autoconhecimento para quê? Para fazer guerra? Não faz sentido", diz Burle (Foto: Divulgação)

Luiz Otávio de Meira Lins, CEO do Nannai Resort & Spa, é presença confirmada para uma conversa no "Brava.Mente" (Foto: Divulgação)

"O envelhecimento é um enorme exercício de humildade - eu acredito que tem um aprendizado muito grande aí também", afirma o surfista (foto: Divulgação)

Convidado do novo programa, Morongo, criador da marca da wetsuits Mormaii, tocou piano para Burle (Foto: Divulgação)

"Eu penso na morte todos os dias. Porque sou um apaixonado pela vida", revela o pernambucano (Foto: Divulgação)

A gestora ambiental Lígia Moura ajuda o marido no Burle Experience e agora no "Brava.mente" (Foto: Divulgação)

Iasmin, a garotinha da foto, tem hoje 27 anos e está se formando em medicina na Polônia, um tremendo orgulho para o pai (Foto: Divulgação)

Filho de piexe, peixinho é... Reno tem 15 anos (Foto: Divulgação)

Ele se despediu das competições em fevereiro de 2018, descendo uma onda de cerca de 20 metros em Nazaré, o vilarejo português capital mundial do surfe de ondas gigantes.

Radicado no Rio de Janeiro, hoje, aos 56 anos, segue no mar por prazer e trabalho — ele é o treinador de Lucas Chumbo, um dos grandes nomes do esporte atualmente, e da carioca Brenda Moura, de 12 anos. O surfista toca ainda o Burle Experience, escola de esportes aquáticos e de práticas de wellness, como meditação e ioga.

Sua mais nova empreitada é o podcast/videocast Brava.Mente, a ser lançado no dia 25 de junho. Espécie de spin-off da série homônima do canal Off, o projeto abre espaço para conversas sobre superação, resiliência, disciplina e propósito — os ensinamentos do surfe que podem ser aplicados à vida pessoal e profissional de qualquer um.

Com patrocínio da Yosen, marca de suplementos alimentares, e com o apoio da Red Bull, de bebidas energéticas, e da Pactto, plataforma de vídeo análise, os 12 episódios da primeira temporada misturam narrativa documental com entrevistas conduzidas por Burle com empresários, executivos, esportistas, ex-atletas… a lista de convidados é eclética (veja alguns deles nas fotos acima).

Disponível em Brava.Mente, no Spotify, e @bravamente_oficial, no YouTube, o Brava.Mente é um podcast on the road. Ele gravou em Nazaré, no Havaí, no Rio de Janeiro… e não só isso, levou alguns dos entrevistados para o mar.

Casado com a gestora ambiental Lígia Moura, pai de Iasmin, de 27 anos, e de Reno, de 15,  Burle conversou com o NeoFeed sobre o legado do surfe e seu mais novo projeto.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

O que você aprendeu com o surfe?
Como surfista, entendi a necessidade de ter uma mente forte para poder lidar com momentos de muito estresse e pressão. Entrar no mar é até fácil; difícil é voltar para casa. Ali eu vou tomar decisões importantíssimas. O surfe ensina a cair, levantar e lidar com imprevistos… a ter resiliência e paciência… a ser humilde.  O surfe ensina a olhar para o horizonte e pensar: "Tem esperança, vai dar certo… um dia tua onda vai chegar”. No mar, eu não posso me dar o direito de achar que eu vou morrer.  E é assim na vida também. O universo das grandes empresas, por exemplo, é de muita demanda, de muito estresse. Liderar uma equipe, ser um CEO, requer grandes tomadas de decisão. A gente tem de ter calma, estratégia e equilíbrio emocional.

Você poderia contar um momento fora da água em que aplicou os ensinamentos adquiridos dentro da água?
Eu estava acabando de assinar um contrato com a Ambev, para o Burle Experience, com a cabeça a milhão, quando um repórter me ligou dizendo que a Maya Gabeira estava questionando o resgate que fiz dela em Nazaré [em 2013, Burle era mentor da surfista e foi responsável por tirá-la do mar no acidente que quase a matou]. Naquele momento, eu reagi de forma muito tranquila e honesta. É mais fácil ser reativo, né? Alguém te agride e você volta com aquela emoção explosiva, quase um instinto. Mas o esporte me deu essa força para lidar com emoções fortes com maturidade. Tive humildade de me colocar no lugar dela e não atacar — eu não posso atacar o mar nunca. [Na época, Burle reconheceu uma falha no resgate e disse ter aprendido com a situação].

Quando você tem de encarar uma onda gigante ainda tem medo?
Graças a Deus, né? Imagine se eu não tivesse.

E como você lida com o medo?
Eu tenho de me preparar para ter uma reação positiva — ou vou me tornar refém daquela emoção e o medo vai congelar minhas ações. E vou me preparar física e emocionalmente. Mesmo assim, o meu coração vai bater mais rápido, minha respiração vai alterar, mas eu tenho a capacidade de me controlar. Agora, não ter medo… isso não existe. Eu preciso ter medo.

O medo protege.
Sim. O medo é a emoção que nos mantém vivos. É o instinto mais básico, dos mais viscerais. O ser humano primeiro tem de sobreviver e depois se reproduzir para manter a espécie viva — depois a gente pensa no resto. Se eu não tiver medo, vou atravessar a rua sem olhar para os lados. Hoje, a gente recebe estímulos o tempo todo. Como vamos lidar com as mensagens de pânico? De que forma vamos assimilar isso? Eu me preparo para não deixar o medo congelar minhas ações.

"Quando você está correndo um risco tão grande, perto da morte, você se sente muito vivo. É um sentimento de êxtase"

Cada onda gigante surfada é um confronto com a morte? Qual é a sensação?
Eu gostaria de ter palavras para descrever com clareza esse sentimento. Quando você está correndo um risco tão grande, perto da morte, você se sente muito vivo. É um sentimento de êxtase. Uma euforia enorme. Muita adrenalina.

O corpo costuma se ressentir dessas descargas de adrenalina…
Desde os 20 e poucos anos, eu tenho problema de visão. Essa síndrome foi descoberta em pilotos da Primeira ou da Segunda Guerra Mundial. Por causa da adrenalina, as veias da mácula dilatam e, se isso se repete, vai machucando o tecido. E aí você fica vendo essas moscas volantes.

Depois de enfrentar a natureza em uma de suas formas mais violentas, deve bater uma sensação enorme de poder. Mas esse sentimento pode atrapalhar, não?
Pouquíssimas pessoas no mundo conseguem pegar uma onda gigante, entrar no mar em uma condição tão extrema e ainda performar. As pessoas te tratam bem, te idolatram. Isso abre muitas portas e você se empodera. Mas isso pode mexer com o teu ego. Pode te levar para um lugar de arrogância. Eu já tomei muitas quedas na vida. E todas elas aconteceram quando eu estava me achando melhor do que os outros. Meus maiores aprendizados foram nesses momentos. E isso acontece na vida. A diferença é que o surfe de ondas grandes potencializa esses sentimentos.

E como não deixar o ego dominar?
Trabalhei o meu autoconhecimento. Eu errei com as minhas decisões e aprendi com os erros. Aprendi a nunca fazer o papel de vítima. Temos de reconhecer nossas responsabilidades sobre o que acontece com a gente. Errar uma vez, duas, ok… mas três, quatro, cinco vezes… já começa a ser arrogância. É falta de sabedoria. Não há nada mais importante na vida do que se conhecer. A pessoa que procura o autoconhecimento evolui. Vai buscar o autoconhecimento para quê? Para fazer guerra? Não faz sentido.

Os que fazem guerra são os que menos se autoconhecem.
Eu também acho. Quando a gente está bem resolvido, a tendência é a gente trazer a responsabilidade para a gente e traçar o caminho da evolução. Mas estamos inseridos em um contexto social e a gente vai ter de lidar com desafios o tempo todo. A vida não é o que a gente quer. Com a mente equilibrada, a gente consegue chegar lá.

"Eu já tomei muitas quedas na vida. E todas elas aconteceram quando eu estava me achando melhor do que os outros"

Por falar em “chegar lá”, você chegou lá contrariando o prognóstico do seu pai.
A rejeição faz parte da minha vida. Não veio só daquele momento ali do esporte, porque a rejeição não foi só do meu pai, foi da família, foi da sociedade. O surfe tinha uma imagem ruim. Mas, desde cedo, quando meus pais se separaram, eu me senti rejeitado [Burle tinha 8 anos]. Enfrentar o mundo sem essa cobertura do amor, da proteção, do carinho dos pais, fez eu me sentir rejeitado em vários lugares. E, por ter escolhido o surfe, isso se tornou ainda mais forte. Nos anos 1980, no Havaí, os brasileiros eram conhecidos como “maroleiros” [surfistas de ondas pequenas]. Quando chegávamos, diziam: “Fora, haoles [em havaiano, estrangeiros, intrusos]”.

Mas, insisto, você chegou lá.
Meu pai me deu uma motivação porque eu queria provar que ele estava errado. É quando eu percebo que eu sou pequeno [Burle tem 1,72 metro e 67 quilos, hoje]. Eu sou a antítese do herói — aquele magrinho que todo mundo queria tirar onda. Percebendo minhas fragilidades, fui transformando essas ondas em oportunidades.

Desde muito cedo, você cuida do corpo e da mente. É vegano, pratica ioga, meditação transcendental… De onde vem tanto foco?
Eu tenho monofoco. Eu consigo render muito bem naquilo que me prende. Até achei que eu tinha um problema. Na Inglaterra, fui submetido a uns testes, mas não encontraram nada de errado — só o monofoco. Quando eu foco em algo, sou muito intenso. Se você me perguntar qual é a palavra que me define, eu direi “intensidade”. O que me salvou foi esse negócio de querer me conhecer.

Como você lida com o envelhecimento?
É difícil para caramba. Um enorme exercício de humildade — eu acredito que tem um aprendizado muito grande aí também. Quando meu pai tinha uns 60 anos, ele me disse: “Filho, teu corpo envelhece, mas tua mente não”. Eu não quero repetir isso. Por mais que quisesse ser um eterno garoto, eu não vou ser garoto para sempre. Ele sempre foi aquele cara que colocava o pé no acelerador. Meu pai morreu duro. Ele era totalmente inconsequente.

O oposto de você.
Eu treinei para me dar o luxo de ser um pouco inconsequente. Você não tem como entrar no mar gigante e ter a certeza de que vai sair vivo.

E você tem medo de morrer?
Muito, morro de medo de perder tudo isso. Eu penso na morte todos os dias. Porque sou um apaixonado pela vida. Mas eu trabalho, eu juro a você, que trabalho para reverter esse quadro.