Anjos e querubins armados com motosserras pairam sobre um amontoado de troncos cortados. Acima deles, nuvens de gráficos flutuam ao lado de um celeiro iluminado. No centro, uma colheitadeira se enrosca em galhos diante de um fundo noturno. Em primeiro plano, um trabalhador de uniforme abaixa a cabeça diante do cenário perturbador.

A cena faz parte de Arena, pintura monumental de Felipe Rezende sobre lona de caminhão que dá título à sua individual na Galeria Leme, em São Paulo. Com 3,50 metros por 1,38, a obra está instalada em um suporte circular. Para vê-la por completo, é preciso “entrar” na pintura e girar o corpo em torno dela. “O trabalho não é cinético, mas pede que o visitante passeie pela pintura”, explica o artista ao NeoFeed.

A ideia surgiu em sua última viagem à Bahia, seu estado natal, quando a amiga Geovanna Barbosa o levou a um empreendimento do agronegócio. “Fiquei chocado, porque dentro dessa fazenda tudo era ‘Agro é Tech, Agro é Pop’”, lembra. “E, num trabalho anterior, eu concebi o silo como uma espécie de castelo do Drácula. Nesse, eu resolvi pintar essas máquinas de última geração e outras em ruínas, como vi por lá.”

A figura criada por Bram Stoker já habita o imaginário de Felipe há algum tempo. Para a 14ª Bienal do Mercosul, ele apresentou dois trabalhos: Uma solução prodigiosa para um problema barulhento — também presente nesta mostra, ao lado de cinco pinturas de pequeno formato — e Demeter.

Dois detalhes do romance irlandês de 1897 chamaram a atenção do artista. Primeiro, o caixão de Drácula foi transportado da Transilvânia a Londres junto a caixas de terra. Segundo, o navio que conduzia o vampiro se chamava Demeter, a deusa grega da agricultura.

Em Demeter, ele pintou uma lona com imagens ligadas ao agro e a prendeu à gaiola de um caminhão carregado com caixas de sementes, adubo e uma tonelada e meia de terra.

O veículo partiu de Barreiras — cidade onde vivem seus pais, a 863 km de Salvador — e seguiu até Porto Alegre, sede da Bienal. A pintura percorreu esse trajeto junto da carga, transformando a própria viagem em narrativa da obra e em crítica ao ciclo exaustivo do agronegócio no oeste da Bahia.

A escala desses trabalhos ecoa tradições do gênero histórico e da paisagem. Ao instalar a pintura em um suporte circular, Felipe ainda evoca a memória das rotundas — usadas, por exemplo, por Victor Meirelles (1832–1903) no século 19 para criar experiências imersivas.

Tanto Demeter quanto Arena acionam esse jogo entre pintura e performance. E reafirmam o interesse do pintor em pensar a paisagem não como vista estática, mas como narrativa em movimento, seja na estrada ou no corpo do espectador que percorre a obra.

A obra dos peões de obra

Nascido em Salvador, Felipe, hoje com 31 anos, teve seu rumo definido por iniciativa da mãe. Ao perceber o interesse do filho por quadrinhos e desenho, perguntou se ele gostaria de prestar vestibular para design gráfico ou belas-artes. Sem saber exatamente o que a segunda opção significava, escolheu belas-artes e foi aprovado na Universidade Federal da Bahia.

Suas referências visuais vinham tanto dos gibis quanto das enciclopédias da família. A primeira grande virada aconteceu em uma viagem acadêmica ao Inhotim, em Brumadinho, em Minas Gerais, onde teve contato com desenhos de artistas como Tunga (1952-2016) e William Kentridge. “Voltei dessa viagem com a cabeça cheia, muito renovado”, recorda.

Na época, estagiava no setor de maquetes da prefeitura de Salvador. Perto dali, percebeu um canteiro de obras como assunto potencial para pesquisa. Pediu aos trabalhadores restos de materiais — pisos táteis, cacos de revestimento. Começou a desenhar os operários em ação, destacando seus uniformes e equipamentos de proteção sobre o material.

Esse interesse tinha raízes familiares. Sua mãe trabalhava na área de enfermagem. O pai foi caminhoneiro antes de abrir um pequeno comércio. O avô era metalúrgico. “Há um histórico familiar da classe trabalhadora, e comecei a me interessar pelos peões de obra, por esse cotidiano de trabalho braçal”, explica.

Felipe começiu a pintar em lonas depois de ganhar da artista Lanussi Pasquali um conjunto de tintas a óleo e lonas de caminhão que haviam pertencido ao marido dela, o cenógrafo e artista Joãozito (Foto: Geovanna Barbosa)

Com 3,50 metros por 1,38, a obra "Arena" está instalada em um suporte circular: para vê-la por completo, é preciso “entrar” na pintura (Foto: Filipe Berndt)

Em Demeter, Felipe pintou uma lona e a prendeu à gaiola de um caminhão carregado com caixas de sementes, adubo e uma tonelada e meia de terra. O veículo partiu da Bahia e foi até Porto Alegre, sede da Bienal do Mercosul (Foto: Rafael Salim)

Em 2024, no Centro Cultural São Paulo, o artista transformou a obra "Toda Sorte de Remendos" em um "happening" (Foto: Carlos Matos)

Dentro desse universo, Felipe passou a levar seus desenhos para outras superfícies: conchas, paredes, ossos. Qualquer material servia como suporte. Apesar do entusiasmo com a pesquisa, Felipe sentia que o diploma não garantia futuro. Diante da falta de perspectivas, pensou em desistir.

Foi por insistência da artista e amiga Mari RA que se inscreveu no 7º Prêmio EDP nas Artes, do Instituto Tomie Ohtake, em 2020. Para sua surpresa, não apenas foi selecionado, como também venceu.

“Eu sentia aquela síndrome do impostor. Era o mais inexperiente em termos de currículo, mas o prêmio me deu gás para continuar trabalhando”, conta.

Na mesma época, recebeu um presente inesperado da artista Lanussi Pasquali: um conjunto de tintas a óleo e lonas de caminhão que haviam pertencido ao marido, o cenógrafo e artista Joãozito. “Acho que esse material é a sua cara”, disse ela a Felipe.

Justo ele, que havia sido reprovado em pintura na faculdade. “Eu achava as aulas muito maçantes, passar horas preparando a tela. Queria partir logo para a ação, para a intervenção direta sobre os materiais”, lembra.

Ao mesmo tempo, entendeu que o presente simbolizava a união do desejo de intervir pictoricamente em um material ligado ao ambiente de trabalho com marcas de uso. “Para mim, a grande dificuldade era: de onde surgiria o assunto? A lona já trazia esse assunto consigo”, explica.

Um rumo na vida

Embora convicto da pintura e da lona como caminho, seu sustento vinha de trabalhos como designer e ilustrador. Até que, em 2022, conseguiu uma vaga na residência Pivô Pesquisa, em São Paulo, marcando uma virada definitiva em sua trajetória. “Aí a coisa foi andando”, resume.

Foi durante essa residência que o galerista Eduardo Leme, dono da galeria que leva seu sobrenome, conheceu Felipe. Eduardo já havia visto seu trabalho no prêmio EDP e, posteriormente, no 64º Salão de Artes Visuais da Bahia, no Museu de Arte Moderna da Bahia, que abriga uma obra sua em acervo.

“Primeiro, eu gostei dele. Achar o trabalho bom é fundamental, mas é importante ter empatia com a pessoa. E eu gostei muito do Felipe. Além disso, o trabalho dele tem uma coisa muito simpática: a história da narrativa do dia a dia”, afirma Eduardo ao NeoFeed.

Em 2024, Felipe fez sua primeira individual na Galeria Leme. Para a abertura, distribuíram aos visitantes sopas de um comerciante que ele retratou em um dos trabalhos. Uma ação que Eduardo considera comovente, mostrando o envolvimento do artista com seu cotidiano.

No mesmo ano, participou da exposição Lonjuras, no Centro Cultural São Paulo, em que transformou a obra Toda Sorte de Remendos em um happening, trazendo periodicamente novas cenas ao loneiro Wesley Dias inserir como remendos. “Não se trata apenas de virtuosismo na pintura, mas da passagem de uma relação pessoal por meio da obra de arte”, explica o galerista.

Felipe é o artista mais jovem do grupo representado por Eduardo, mas o futuro se mostra promissor. No horizonte próximo, prepara-se para uma residência no Senegal e, em 2026, uma individual na Casa de Cultura do Parque, em São Paulo, além de apresentar trabalhos na galeria Salon H, em Paris. “Hoje penso que minha vida tem um rumo”, afirma Felipe. “Eu tive respostas."