Marrakech - O iraniano Jafar Panahi já sabe o que o espera em casa, independentemente do destino de Foi Apenas Um Acidente, confirmado na segunda semana de dezembro na pré-lista de indicados ao Oscar de melhor filme internacional. “Há um preço a pagar”, disse o cineasta de 65 anos, condenado recentemente a mais um ano de prisão por “ações de propaganda” contra o regime teocrático de seu país.

“Há mais de três meses, trabalho dia e noite na campanha do filme para o Oscar, de país em país. Embora a sentença tenha saído no meio desse processo, assim que eu terminar a campanha, voltarei ao Irã o mais rápido possível”, afirmou Panahi, na recém-encerrada 22ª edição do Festival Internacional du Film de Marrakech (FIFM).

Como a condenação in absentia tinha acabado de ser anunciada no Irã, Panahi preferiu não dar entrevista no Marrocos - possivelmente por recomendação de seu advogado, Mostafa Nili, que pretende recorrer da decisão. Ainda assim, ele apresentou Foi Apenas Um Acidente em sessão de gala e cumpriu o compromisso de participar do Conversations, evento direcionado a profissionais e a estudantes de cinema, que teve cobertura do NeoFeed.

No palco do centro cultural Meydene, o diretor deixou claro que não tem medo de retornar à cadeia. Por criticar o regime totalitário e denunciar a repressão com as suas obras, Panahi já foi encarcerado duas vezes. “Sei que os filmes que faço não agradam o governo do meu país, mas isso não é motivo para eu não voltar para casa”, contou Panahi, muito aplaudido pela plateia marroquina.

Além da prisão de um ano, a sentença proferida pela 26ª Vara do Tribunal Revolucionário Islâmico de Teerã inclui a proibição de deixar o Irã por dois anos e de se associar a qualquer organização política ou social. A mídia internacional tomou conhecimento da condenação graças ao post do advogado Mustafa Nili, na rede social X.

“Existem apenas dois tipos de cineastas”, disse Panahi, homenageado em outubro, na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com o Prêmio Humanidade. “Há aqueles que correm atrás do público, sendo sensíveis às necessidades, ao gosto e às expectativas de quem compra o ingresso. Eles representam 95% dos cineastas atualmente”, explicou.

Já os 5% restantes correspondem aos diretores que não se preocupam necessariamente com o que o espectador quer ver: “Se você faz parte desses 5%, como eu, roda os filmes que quer, fala o que precisa e deixa que o público venha ou não ao seu encontro. E quando você faz o que acha certo, não se submete ao poder de quem quer que seja.”

Ainda assim, o cineasta sofre as consequências de suas ações. “Se você estiver em um país ocidental, geralmente o preço a pagar é econômico. Em um país como o meu, é político. Sempre estive ciente disso, o que não me impediu de fazer essa escolha”, comentou Panahi, que representa a França na disputa pelo Oscar de melhor filme internacional.

Na categoria, Foi Apenas Um Acidente é um dos principais adversários do Brasil, com O Agente Secreto, ao lado de Valor Sentimental, da Noruega.

A manobra de Foi Apenas Um Acidente representar outro país é justificada por se tratar de uma coprodução do Irã com a França, onde o diretor ainda fez a pós-produção do drama. Vencedor da última Palma de Ouro de Cannes, o filme segue os passos de ex-presos políticos que sequestram o possível homem que os torturou. Enquanto buscam a confirmação da identidade do algoz, eles questionam a ideia de que a violência só se paga mesmo com violência.

Panahi começou a sofrer perseguição há 25 anos, desde o seu terceiro longa-metragem, O Círculo, que expõe a opressão sobre as mulheres no Irã depois da Revolução Islâmica de 1979. Seus dois primeiros longas, O Balão Branco (1995) e O Espelho (1997), já discutiam questões sociais no Irã, mas conseguiram driblar a tesoura por serem filmes rodados com crianças - tradicionalmente, o filão infantil costuma passar despercebido pela censura.

"Foi Apenas Um Acidente" representa a França na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro — uma manobra para burlar as proibições a Panahi (Foto: FIFM 2025)

A perseguição ao cineasta começou em 2000 com o filme "O Círculo", que expõe a opressão sobre as mulheres no Irã depois da Revolução Islâmica de 1979 (Foto: themoviedb.org)

O primeiro longa de Panahi, "O Balão Branco", de 1995, já discutia questões sociais no Irã, mas não foi censurado por ter crianças no elenco, uma estratégia para driblar os censores (Foto: themoviedb.org)

Em "Isto Não é Um Filme", de 2011, Panahi, cumprindo prisão domiciliar, fala sobre a proibição de filmar (Foto: themoviedb.org)

Em 2015, para burlar a repressão, o cineasta fez as vezes de motorista de táxi e filmou conversas com passageiros, enquanto rodava pelas ruas de Teerã (Foto: themoviedb.org)

A sua primeira condenação veio em 2010, sob a acusação de “crimes contra a segurança nacional” e de “propaganda contra o governo”. Panahi foi sentenciado a seis anos de prisão e proibido de trabalhar por 20 anos. Ou seja, sem poder realizar filmes, conceder entrevistas ou mesmo deixar o Irã para participar de festivais internacionais.

Em 2011, ele foi colocado em prisão domiciliar, o que não o impediu de rodar clandestinamente.

“Ao receber aquela sentença, comecei a pensar em uma solução para continuar rodando. Daí nasceu Isto Não é Um Filme [2011]”, recordou o diretor, referindo-se ao longa baseado na própria proibição de trabalhar, mostrando a sua rotina frustrante, ao vislumbrar e descrever o filme que não podia fazer.

Foi pensando em outra forma de rodar, mesmo sem permissão, que nasceu Taxi Teerã (2015), com o cineasta bancando o motorista pelas ruas da cidade para poder ouvir o que os compatriotas tinham a dizer sobre o regime. “Coloquei uma câmera no meu carro só para poder fazer um filme com as histórias dos meus passageiros.”

Panahi foi encarcerado pela segunda vez em 2022, ao buscar esclarecimentos sobre as acusações contra outro cineasta iraniano, Mohammad Rasoulof. Este diretor concorreu ao Oscar de melhor filme internacional este ano por A Semente do Fruto Sagrado, representando a Alemanha.

Detido por quase sete meses, Panahi só conseguiu deixar a prisão em 2023, depois de fazer greve de fome por 48 horas. E assim que voltou às ruas de Teerã, o cineasta já começou a planejar Foi Apenas Um Acidente, rodado em 25 dias, com uma equipe reduzida e com um terço da história ambientada em uma van, para não despertar a suspeita das autoridades locais.

“Apesar das oportunidades que tive, mesmo nos anos mais difíceis, eu nunca considerei deixar o meu país e viver como refugiado em qualquer outro lugar”, disse Panahi, já nos minutos finais do evento no Marrocos.

“O país de cada um é o melhor lugar para viver, independentemente dos problemas. É no Irã que consigo respirar, encontro uma razão para viver e, principalmente, tenho força para criar”, complementa.