Entre todas as tecnologias criadas até hoje, nenhuma conseguiu prever o futuro — talvez um dos maiores sonhos da humanidade. Por enquanto, continuamos a ter controle apenas sobre o passado enquanto ele foi presente e sobre o aqui e agora.

Nos últimos anos, porém, graças às conquistas das ferramentas emergentes, tem sido possível nos prepararmos um pouco mais para o porvir. E isso pode ser feito por meio de dados, sobretudo na área da educação, defende a futurista canadense Sinead Bovell, em entrevista exclusiva ao NeoFeed.

Aos 34 anos, bacharel em finanças com especialização em química e MBA pela Universidade de Toronto, filha de mãe irlandesa e pai guianês, antes de se dedicar a traçar cenários futuros, ela pensava seguir carreira como consultora de gestão. Mas, em 2017, aconteceu a virada de chave.

Sinead decidiu trocar seu cargo na empresa global AT Kearney pelo empreendedorismo e criou a WAYE (Weekly Advice for Young Entrepreneurs), plataforma de educação dedicada a preparar os jovens para o futuro do trabalho na era digital.

Combinando sua paixão por tecnologia e pelo negócio social, sua luta ganhou relevância. Atualmente, Sinead é consultora especialista do Órgão Consultivo de IA das Nações Unidas e integra o Comitê de Bretton Woods, onde contribui para o fortalecimento de sistemas multilaterais para enfrentar os desafios globais do século 21.

Todos esses tópicos, com destaque para o impacto da inteligência artificial na construção do amanhã, foram abordados na primeira visita de Sinead ao Brasil. Em São Paulo, ela participou do  Arco Day.  No evento, organizado pela Arco Educação, plataforma de soluções para a educação básica.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista de Sienead ao NeoFeed.

Ter nascido em um família birracial influenciou de alguma forma sua decisão de ser futurista? 
Ao crescer em uma família birracial, minha visão de mundo foi automaticamente ampliada. Eu já estava exposta a diferentes sotaques, a diferentes tons de pele, entendendo como a sociedade pode enxergar isso e como eu enxergo isso. O mundo atribuia diferenças a essas características que não existiam dentro da minha casa e isso me deu uma bússola ética diferente e moldou também a forma como eu enxergo a tecnologia.

Como? 
Essa dinâmica dentro de casa foi responsável por abrir meus olhos para a questão do acesso à tecnologia. Eu conseguia perceber para quem a tecnologia funcionava melhor e para quem não funcionava. Quero dizer, há países de origem — como os de onde meus pais vieram — nos quais eles não teriam o mesmo acesso a internet que eu tive ao crescer no Canadá. Então, a divisão digital e os desafios que ela apresenta são questões das quais eu também tenho uma consciência muito clara.

Em que momento você decidiu mudar sua trajetória profissional?
Ao estudar previsões estratégicas dentro da minha então função, eu encontrei uma enorme lacuna entre as habilidades que serão necessárias no futuro e a complexidade das decisões que as crianças de hoje, que estão na escola, terão de tomar ao chegar lá. Nessa pesquisa, percebi também a falta de preparo e prontidão que temos no presente ao endereçar essas questões. Esses dados, de certa forma, me levaram a unir a educação ao futurismo.

Qual é o impacto que essas crianças terão nesse futuro?
Está claro que o mundo vai se tornar cada vez mais complexo, e são as crianças que estão na escola hoje que terão o papel mais importante e herdarão os resultados desse mundo. Por isso, acredito que precisamos fazer tudo o que pudermos para prepará-las para isso — e eu não achava que estávamos fazendo. Para mim, uma frase fazia muito sentido: “Líderes veem o futuro como algo importante, mas nunca urgente”.

E qual é a urgência do futuro?
É justamente por enxergarmos o futuro dessa forma que acabamos adiando decisões sobre ele e é aí que surgem os desafios. Acho que estamos vivendo isso agora, né? As redes sociais e o impacto que estão tendo sobre os jovens. Dá para perceber que esse será um padrão com novas tecnologias, se não intervirmos e não aprendermos algo com essa experiência.

"Tecnologia nada mais é do que infraestrutura. E nós precisamos começar a enxergá-la como um direito fundamental"

Pensando nas formas de intervenção, qual é o papel das empresas?
Quando estou com líderes, mostro a eles os diferentes cenários em que o futuro pode se desenrolar o que é possível hoje, como as capacidades podem se apresentar e, a partir disso, quais decisões precisam ser tomadas agora, neste momento. Pode ser muito assustador simplesmente pintar o futuro como um conjunto de cenários e parar por aí. Mas, quando você consegue dar um passo atrás e identificar as decisões que precisam ser tomadas no presente, isso oferece às pessoas uma estrutura para agir.

O que é importante nesse processo?
Ser o mais realista possível. Mostrar o que pode ser ótimo, mas também o que pode não ser tão bom assim, caso nenhuma decisão seja tomada para evitar esse cenário ou a decisão certa não seja tomada para avançar em direção a algo melhor. Existe uma consequência em não fazer nada e nós podemos prever qual seria esse resultado — mas ele não precisa ser o caminho que escolhemos seguir.

No Brasil, 7% da população não é alfabetizada. Como você acredita ser possível pensar no futuro e em tecnologia se questões tão básicas  ainda continuam sem solução?
Tecnologia nada mais é do que infraestrutura — seja leitura, escrita, eletricidade, internet ou inteligência artificial. E nós precisamos começar a enxergá-la como um direito fundamental, o que ainda não acontece. Se você está excluído da economia, se não tem a capacidade de fazer uma refeição por falta de acesso adequado à eletricidade, tudo isso remete aos direitos humanos, certo? Então, eu acho que precisamos começar a incluir as tecnologias de uso geral como parte da conversa maior sobre equidade, acesso, igualdade e mobilidade econômica e social.

Qual é o papel que o governo e as ONGs têm nesse processo?
Eu acho que as ONGs desempenham um papel único nesse momento, porque elas conseguem enxergar o espectro completo. Os governos e os países costumam pensar apenas em suas próprias demandas, enquanto essas organizações têm uma visão global e, potencialmente, usam suas forças para moldar a tecnologia de um jeito que funcione para todos. Mas, a maior parte desse processo depende das decisões humanas que estamos tomando hoje. O acesso à tecnologia não é um problema técnico.

Como resolver então a desigualdade digital?
Nós sabemos o que é necessário para conectar à internet. Sabemos o que é preciso para construir um centro de dados de IA. Nós é que estamos escolhendo não compartilhar esses recursos. E é por isso que acredito que as ciências humanas são tão centrais na educação.

Quais são as ferramentas necessárias para viabilizar essa educação?
Precisamos preparar as crianças com habilidades para sempre pensar em ética, filosofia e numa visão mais ampla de como as sociedades humanas se organizam em vez de apenas uma forma restrita de programar uma determinada tecnologia, como a IA. Mais uma vez, os maiores problemas do mundo não são técnicos, são sociais.

Como resolver a questão dos vieses das novas tecnologias?
A inteligência artificial pode ser muito tendenciosa, criar padrões e interferências nas respostas, já que ela é um reflexo de nós e os humanos têm uma história muito complicada. O bom é que, diferentemente da história, os dados não precisam necessariamente se repetir e podem, sim, ser moldados e editados. Isso significa que precisamos de muitas vozes moldando a tecnologia e precisamos disso já.

"Quando você consegue dar um passo atrás e identificar as decisões que precisam ser tomadas no presente, isso oferece às pessoas uma estrutura para agir"

Quais são as interferências do cenário político no desenvolvimento desse futuro?
A liderança que temos neste momento será um fator determinante para que as tecnologias construídas hoje funcionem bem para a humanidade e sejam justas para todos. Eu sei que nós vivemos em um ambiente geopolítico muito complexo, mas penso que a necessidade é a mãe da inovação.

Você poderia explicar melhor?
À medida em que os países começam a lidar com a ideia de que as relações globais não são mais como antes, que as alianças estão mudando, estamos vendo uma resiliência dos países em não depender dos outros para construir sistemas soberanos de IA e tomar o futuro em suas próprias mãos. E eu acho que essa é a melhor resposta para o momento. Se você não pode prever se um amigo ou aliado continuará ao seu lado, precisa tomar decisões com base na suposição de que será capaz de se manter bem, independentemente de como essa relação evolua.

As novas gerações estão com muito medo do futuro.
Eu não os culpo. As redes sociais geralmente são o primeiro ponto de contato deles com o conhecimento sobre o mundo mais amplo. E os algoritmos das redes sociais são otimizados para engajamento. Ou seja, conteúdos revoltantes e polarizadores têm um desempenho melhor do que conteúdos otimistas, prósperos e esperançosos. É por isso que eu tenho um grande problema com as redes sociais: elas praticamente colocaram a democracia de lado. E acho que também não fazem um bom trabalho em trazer as crianças para o futuro. É por isso que falo tanto sobre tecnologia e sobre entender o futuro como parte essencial das salas de aula.

Como levar o futuro para dentro das escolas?
O professor de inglês ou de matemática não precisa saber exatamente como serão os robôs daqui a 20 anos, mas sim mostrar qual é o potencial e então perguntar aos alunos: “Como vocês se sentem em relação a isso? Como vocês projetariam isso de forma diferente?” É sobre fazê-los se empolgar com o mundo no qual estão prestes a entrar — e mostrar esse mundo a eles.

O que você diria para motivá-los?
O futuro é, na verdade, sobre as decisões que são tomadas hoje, certo? Ele não simplesmente acontece com a gente. Nós fazemos escolhas que o constroem. E as escolhas que eles fazem, mesmo em suas próprias vidas individuais, importam e vão impactar o resultado do mundo em que viverão. E eu acho muito triste que eles vão herdar problemas que não criaram. A maioria dos problemas que eles enfrentarão, nós já temos as soluções para resolvê-los — mas não estamos escolhendo usá-las. É a decisão de causar impacto na sua própria vida, na vida do seu vizinho. Quando você dá um zoom out e olha em escala isso faz diferença no mundo.

Qual é a principal mensagem que você gostaria de transmitir neste momento?
Acho que o futuro não é tão assustador quanto podemos imaginar. E quanto mais você o entende e aprende sobre ele, mais fortalecido se sente — e mais capacidade tem de moldá-lo. E a sua experiência de vida já é o suficiente para que a sua voz tenha relevância na construção do rumo que as tecnologias irão tomar.