Em 1927, aos 33 anos, Mário de Andrade embarcou em expedição pela Amazônia para conhecer o verdadeiro Brasil. A experiência resultou em um clássico de literatura de viagem, O Turista Aprendiz, em que a diversidade da cultura, da paisagem e da culinária é tratada com empolgação, espanto e muito humor. Até porque são muitas as contradições, a começar por Andrade, que soa conflituado por ser brasileiro.
É com o mesmo espírito que o cineasta Murilo Salles leva o diário de viagem às telas, em Mario de Andrade, o Turista Aprendiz, traduzindo em imagens as descobertas do escritor, enquanto ele tentava definir o que é brasilidade. Esse já era o objetivo do modernismo, movimento do qual Andrade foi um dos idealizadores, defendendo o nacionalismo, o experimentalismo e a transgressão, para a quebra de padrões e tradições nas artes.
O longa-metragem lançado esta semana nos cinemas é uma adaptação livre da obra literária, à medida que Salles se inspira no que Andrade relatou no livro, mas também incorpora dados biográficos do autor, realizando um filme-ensaio. Mais do que simplesmente encenar a viagem, a partir dos registros (nem sempre lineares) do escritor, o diretor abre uma janela para a mente de Andrade.
Suas impressões e inquietações sobre o Brasil muitas vezes tomam formas curiosas na tela. O próprio Andrade reflete sobre a identidade cultural, pensando alto diante de sua máquina de escrever ou olhando para a câmera e falando diretamente com o espectador. Ele também pode criar uma conversa imaginária com tipos locais que despertam o seu interesse durante o percurso, como o seringueiro da selva.
Outros momentos já reconstituem a jornada em si, como a decepção de Andrade, ao se dar conta de que seria o único “pensador” da viagem, patrocinada pela mecenas Olívia Guedes Penteado — sua comitiva trazia, em sua maioria, membros da elite.
A parte documental também se apoia nas fotografias que o escritor tirou ao longo da viagem de três meses na região amazônica: das águas, da vegetação, das embarcações, dos trabalhadores braçais, dos pescadores e das manifestações folclóricas.
“Não fui feito para viajar, mas agora é tarde. Parti sentindo um vazio pelo que larguei em São Paulo. Me preparo então para tribos selvagens, jacarés e formigões”, diz Andrade, na pele do ator Rodrigo Mercadante. “O Brasil não é um país que acumula. Há sempre um novo a se instalar. E foi assim que viajei: com a intenção de absorver e copiar o Brasil. Me interessava fazer o Brasil nascer de si mesmo”, completa o escritor.
A impressão que se tem é a de que Andrade não escreveu os relatos da viagem pensando necessariamente em livro, até porque o material saiu em sua coluna no jornal O Diário Nacional. Ele só revisaria as anotações em 1943, 16 anos depois da expedição e dois antes de sua morte, em 1945, aos 51 anos, de infarto, em São Paulo.
Mario de Andrade, o Turista Aprendiz é todo concebido como uma carta de amor ao escritor que dedicou a sua vida a refletir sobre o Brasil.
Andrade desbravou o país, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira, em embarcação a vapor, um ano antes de publicar sua obra máxima: Macunaíma, em 1928, sobre o “herói sem caráter”.
Como Macunaíma já estava praticamente escrito quando ele embarcou no Rio de Janeiro, com destino a Belém do Pará, o que se vê é um escritor com as ideias em ebulição. Muitas vezes, ele reflete aqui sobre o próprio Macunaíma, o personagem espertalhão que é uma espécie de amálgama da formação do povo brasileiro, por representar a mistura de raças.
“Eu não quero que imaginem que eu pretendi fazer de você a expressão heroica da nossa cultura. Não tive a intenção de sintetizar o brasileiro em você”, comenta Andrade, no filme, como se conversasse com a sua criação literária.
E ele completa: “Você é apenas o herói dessa brincadeira. É um sintoma de que a cultura nacional não existe em país incaracterístico e com um povo incaracterístico. Formá-la é a nossa aventura. E você serve para isso, Macunaíma. Para nos dar um passado, onde os homens prevaricam, enganam e preguiçam".