Nem a criatividade e informalidade dos hippies, nem o apoio dos militares, ou a proximidade com a elite acadêmica, ou mesmo o aconchego vibrante do clima da Califórnia.

Para explicar o mítico sucesso do Vale do Silício como berço das grandes empresas de tecnologia que ajudaram a moldar a sociedade contemporânea, o jornalista e pesquisador Sebastian Mallaby apresenta, em seu “A Lei da Potência”, (ed. Intrínseca), heróis raramente louvados na historiografia: os investidores, especialmente os chamados investidores de risco, que ajudaram a criar empresas como Atari, Apple e PayPal.

Ao descrever a importância de financistas como Arthur Rock, Don Valentine, John Doerr ou Masayoshi Son, Mallaby tece com habilidade histórias de negócios que se entrecruzam, com personagens marcantes, às vezes aliados, às vezes em confronto raivoso.

Nessa aventura, em que praticamente só há homens brancos e a meritocracia se confunde muitas vezes com a “mirror-cracy”, a camaradagem entre iguais, os investidores foram o elo entre inovadores e o mercado. 

Separando de forma inteligente eventos simultâneos, o relato mostra as etapas de uma evolução no mercado de empresas em formação, as startups, que iria estender a influência dos investidores dos Estados Unidos até, no outro lado do globo, à formação de gigantes chineses como o Alibaba, de Jack Ma.  

Mallaby consegue, com êxito, estabelecer marcos cronológicos para uma história do capital de risco no setor de tecnologia, desde os anos 1960, quando o apoio dos investidores de risco, operando sem as restrições oficiais impostas ao mercado de ações, permitiu a professores universitários montar emblemáticas – e revolucionárias – fábricas de chips, até o século XXI, quando produtos intangíveis, movidos a software, dominaram o imaginário da indústria tecnológica.

No começo deste século, a competição dos investidores de risco já levantava críticas, e surgia a figura do “investidor-anjo”, com dinheiro e interesse em participar, sem muitas exigências, do sucesso das empresas emergentes em um dos setores mais dinâmicos da economia.

Os altos lucros dos novos negócios e o clima de euforia no mercado faziam com que o “investimento-anjo” se tornasse “o novo passatempo da elite, assim como aconteceu com a cirurgia estética em Hollywood”, descreve Mallaby.

Os altos lucros dos novos negócios e o clima de euforia no mercado faziam com que o “investimento-anjo” se tornasse “o novo passatempo da elite, assim como aconteceu com a cirurgia estética em Hollywood”

Jornalista e escritor com carreira de destaque na Economist e no Washington Post, onde ainda colabora como colunista, Mallaby é um autor bem-sucedido com obras notáveis sobre temas como a indústria de fundos de hedge, as idiossincrasias e influência do Banco Mundial e a biografia do ex-presidente do Fed, Alan Greenspan. A objetividade, o bom humor e um inteligente esforço analítico marcam esse “A Lei da Potência”, que tem como subtítulo “Capital de Risco e a Criação do Novo Futuro”.

“Lei da Potência (Power Law)”, no caso, é, como explica Mallaby, a característica de investimentos como os que impulsionaram as startups de tecnologia a partir da segunda metade do século passado. Em certos campos inovadores, é inevitável um grande número de fracassos, mas os sucessos, ao desbravarem nichos com grande potencial, são capazes de ganhos que superam em muito os recursos perdidos nos negócios malsucedidos, remunerando com folga os investidores nessas áreas.

O livro conta como, a princípio, essa Lei da Potência levou ao estabelecimento de investidores de risco que apostaram em negócios promissores mas incipientes, que dificilmente interessariam aos fundos de investimento tradicionais. E como o radar dos financiadores mudou, no tempo, incluindo não só o interesse em oportunidades inéditas de lucros de crescimento exponencial mas também no apoio a negócios bem-sucedidos com chances de aumentar de escala.

A história descreve em detalhes saborosos os primeiros momentos em que os donos do dinheiro obtinham o controle de bons negócios inventados por empreendedores talentosos; passa pela evolução em que, como na criação do Yahoo, os investidores de risco se encarregam de viabilizar boas ideias de gênios sem talento administrativo; e chega aos “fundadores”, como os criadores do Google ou do Facebook, que se rebelam contra a contratação de executivos de fora para chefiar as empresas que criaram.

O autor Sebastian Mallaby

Do “cheiro pungente” do apartamento onde Jack Ma, esposa e empregados, alimentando-se de miojo, trabalhavam intensamente no que seria a gigante Alibaba à provocação de Steve Jobs ao comparecer de calças de pijama e camiseta à primeira reunião com potenciais financiadores, há uma abundância de histórias exóticas de um universo muito peculiar, para o apreciador desse tipo de folclore.

Mallaby reconhece o papel dos polpudos recursos governamentais no fomento a laboratórios e encomendas que estimularam a multiplicação de empresas de tecnologia, mas minimiza seu impacto. Também registra que mudanças na legislação, com incentivos fiscais, foram essenciais na transformação do Vale do Silício em nascedouro de inovações.

Ele insiste que o protagonismo deve ser concedido aos investidores, que alimentaram uma rede de relações capaz de, por um lado, botar de pé negócios para lá de originais e, por outro, incentivar mentes criativas a inventar seus próprios empreendimentos ou embarcar em aventuras empresariais, como no caso de Chuck Geschke, da Adobe, sabendo que teriam apoio em caso de dificuldades.

“Grandes investidores de risco podem se transformar em instrumentos para modular as oscilações de humor de um empreendedor”, defende, sustentando-se em casos como o da Cisco, em que executivos da lendária Sequoia Capital atuaram como mediadores ou como orientadores entre pessoas brilhantes e temperamentais e indisciplinadas, para garantir a sobrevivência da empresa.

“Grandes investidores de risco podem se transformar em instrumentos para modular as oscilações de humor de um empreendedor”

Na conclusão, Mallaby analisa as principais críticas aos investidores de risco, como a de que, ao manter o foco em enriquecer individualmente, não dariam atenção a interesses legítimos da sociedade, com estímulo ao crescimento desenfreado de certas empresas “disruptivas”, sem cuidado com eventuais efeitos negativos sobre o entorno. 

Ele admite que a desigualdade de renda é uma das consequências visíveis desse meio de operação no mercado, mas esboça um roteiro para permitir ao governo lidar com esses problemas, por meio de uma boa regulamentação governamental que coíba excessos e um sistema de tributação que alivie as empresas e carregue a taxação sobre os indivíduos.

O roteiro, apenas esboçado, menciona até a possibilidade de aumentar (ou criar) imposto sobre herança, mas não chega a tratar de obstáculos como arranjos de planejamento tributário capazes de frustrar desejos de redistribuição de renda a partir dessa potente máquina de geração de riqueza.

Mallaby responde com o exemplo da mítica firma Kleiner Perkins à acusação de que, com a ênfase nos ganhos de mais curto prazo, falta aos investidores de risco consciência dos desafios de longo prazo para a humanidade, como a questão ambiental.

Por influência de um de seus principais executivos, a Kleiner acreditou nos anúncios governamentais de iminentes medidas para taxação das emissões de carbono, apostou pesado em energia “limpa”, como a geração eólica; mas não teve capacidade gerencial de administrar a baixa rentabilidade desses investimentos e fracassou nesse campo.

Outros investimentos de nicho, como em empresas de equipamentos de redução de emissões, no entanto, foram bem sucedidos, afirma o autor – que implicitamente reconhece, porém, a incompatibilidade da lógica do capital de risco com importantes investimentos na economia verde, ligados a commodities como energia e de maior prazo de maturação.     

Outro pecado reconhecido por Mallaby é o machismo ainda dominante no universo do investimento de risco, do qual o livro dá bons exemplos. Curiosamente, mulheres são estrelas na narrativa de negócios descrita no livro em investimentos de risco na China, onde investidores americanos ou chineses egressos de universidades americanas estão no nascimento de gigantes como a citada Alibaba, de Jack Ma, e a Tencent. Só recentemente, também, as firmas começaram a tomar providências para aumentar a diversidade racial nesse meio, mostra Mallaby.

Com uma coleção de intervenções estatais mal executadas no fomento a inovação e tecnologia, a China, como descreve o livro, aproveitou bem a contribuição dos investidores de risco, fechando os olhos para algumas soluções heterodoxas adotadas como forma de replicar em território chinês incentivos e modelos de gestão importados do Vale do Silício. A evolução tecnológica, porém, ganha cada vez mais um aspecto de disputa geopolítica, e é com esse tema que Mallaby, conclui o livro.

Ainda que seja extremamente econômico na descrição de como os projetos geopolíticos dos EUA ajudaram a criar o ambiente onde prosperou o investimento de risco norte-americano, Mallaby, ao fim, mostra ver com pragmatismo o papel da inovação e da tecnologia na disputa pelo poder mundial.

Membro do Conselho de Relações Exteriores (CFR), um think tank conservador de prestigio dos EUA, conclui seu relato com considerações sobre a necessidade de conter a absorção, pela China, de conhecimento produzido pelos EUA.

Ele desaconselha atitudes como impedir investimentos norte-americanos em tecnologia na China, ou barrar a entrada de chineses no setor de inovação (embora defenda uma vigilância sobre possíveis espiões). Mas apoia restrições à entrada de capital chinês em setores sensíveis e punição severa à transferência ilegal de know how tecnológico à China.

Crítico do controle estatal que o governo chinês vem ampliando sobre os empreendedores locais, Mallaby reconhece que em um ponto os chineses estão cobertos de razão e devem ser acompanhados pelos EUA: no incentivo governamental à pesquisa e à ciência.

A China ampliou seus gastos em pesquisa e desenvolvimento de 0,9% do PIB, em 2000, para 2,1%, em 2018, numa economia em rápido crescimento. Os EUA mantém um gasto com pesquisa e desenvolvimento entre 2,5% e 2,8% do PIB.

“O governo deve investir de forma mais significativa em pesquisa e educação científica, semeando o terreno para inovações com apoio de capital de risco”, recomenda Mallaby, sugerindo também que a Casa Branca resista à “pressão populista” por mais impostos sobre as sociedades de capital de risco. “Deve construir, ainda, uma colaboração maior entre o Vale do Silício e o Pentágono, para que as firmas apoiadas pelo capital de risco ganhem grandes contratos de defesa”, acrescenta.

“O governo deve investir de forma mais significativa em pesquisa e educação científica, semeando o terreno para inovações com apoio de capital de risco”

Compilados já no encerramento do livro, esses conselhos indicam ao Brasil quão longe o país está de acompanhar o que os especialistas consideram necessário para garantir a vitalidade de uma economia conectada com os desafios de competitividade do século XXI.

Serviço:
A lei da potência - Capital de risco e a criação do novo futuro
Sebastian Mallaby
608 páginas
Editora: Intrínseca
Livro impresso: R$ 129,90
E-BOOK: R$ 89,90