Por trazer à lembrança as histórias de naufrágios e tesouros, as imagens de garrafas incrustradas de cracas envolvem com uma aura de fantasia e charme os vinhos e espumantes envelhecidos nas profundezas dos oceanos.
A maturação de bebidas em altas profundidades, porém, vai muito além do fascínio pela ideia de aventura, despertando cada vez mais o interesse de produtores e especialistas de todo o mundo — e se transformado em um promissor negócio. A enologia descobre o aquoir, uma adaptação ao universo subaquático do conceito de terroir.
A nova tendência está baseada na hipótese segundo a qual o ambiente dentro d’água oferece condições únicas para o processo de amadurecimento das bebidas. A pouca luz, a pressão elevada, as temperaturas constantes e a baixa concentração de oxigênio poderiam aprimorar a qualidade dos vinhos e espumantes.
Ainda que o método não tenha sido corroborado por estudos científicos definitivos, vinícolas de todos os cantos do planeta estão lançando ao mar pequenos lotes de suas produções. Quando resgatadas, as garrafas fazem brilhar os olhos de muitos de seus clientes — sobretudo os de alto padrão, sempre dispostos a pagar mais por experiências exclusivas e inusitadas.
“As garrafas emergem cobertas por conchas e sedimentos, o que as torna um atrativo único”, diz Jean Carraro, proprietário e sócio da Videiras Carraro, sediada na cidade gaúcha de Bento Gonçalves, em conversa com o NeoFeed. Em 2018, ele se uniu a Fabiano Müeller, da Vinícola Fama, de São Joaquim, em Santa Catarina, para experimentar o envelhecimento undersea.
As primeiras remessas ficaram um ano, a 12 metros de profundidade, na costa catarinense. “Conforme fomos provando e analisando os vinhos e espumantes, vimos que havia muita diferença entre a maturação submarina e na cave. Com o passar do tempo notamos mudanças de cor, aroma e sabor”, conta Jean. “Um ano sob a água equivale a três anos em adega terrestre.”
Mais frutados, os espumantes envelhecidos no fundo do mar custam cerca de R$ 1,9 mil. E os tintos, com taninos mais macios e aromas intensificados, R$ 2,2 mil. Uma valorização de, pelo menos, 955% em relação às bebidas deixadas para amadurecer em terra firme.
Outra vinícola brasileira a testar os poderes das adegas subaquáticas foi a gigante Miolo Wine Group. Em 2016, a companhia gaúcha mergulhou 504 garrafas do Miolo Cuvée, a 60 metros no mar da Bretanha, na costa da França. O projeto foi criado para celebrar a exportação de 100 mil garrafas do espumante para o mercado francês.
“O lote foi retirado do mar em 2017 e depois veio para o Brasil, onde ficou na cave subterrânea da Miolo, no Vale dos Vinhedos [cidade do Rio Grande do Sul]”, conta, ao NeoFeed, Adriano Miolo, diretor superintendente do grupo, sem revelar quanto investiu na experiência.
A coleção Miolo Cuvée — Under The Sea foi recém-lançada e cada garrafa é vendida por R$ 3,5 mil — a título de comparação os espumantes mais caros da marca, quando maturados em terra firme custam em torno de R$ 440.
A cena vem se repetindo mundo afora. Na Grécia, a Gaia Wines usou o envelhecimento undersea, pela primeira vez, em 2011. Maturou o vinho branco Thalassitis, na profundezas do Mar Egeu. Nos Estados Unidos, a Mira Winery lançou alguns exemplares de cabernet sauvignon em Charleston Harbor, no litoral da Carolina do Sul. Aliás foi a vinícola americana a primeira a usar o termo aquaoir, quando do lançamento do projeto, em 2013.
Naufrágio do século 19
O entusiasmo em torno das adegas subaquáticas é tanto que já existem (embora poucas) empresas especializadas no serviço. A Miolo, por exemplo, contou com a parceria da francesa Amphoris. Operando desde 2013, no Mediterrâneo, a empresa faz o monitoramento constante das condições de pressão e temperatura.
Na Croácia, a Coral Wine Project mergulha vinhos no Mar Adriático, a profundidades entre 15 e 30 metros, sob temperaturas que variam de 8 a16 graus Celsius. No Japão, a Hokkaido Kaiyo Matsuri permite que consumidores submerjam, além de vinhos, saquê e uísque, na costa de Hokkaido, a mais setentrional das ilhas japonesas. Todo o processo de envelhecimento é acompanhado por câmeras.
A maturação undersea começou a ganhar força em 2010. Naquele ano, mergulhadores encontraram 145 garrafas de champanhe, entre elas, Veuve Clicquot, Juglar e Heidsieck, nos destroços de um navio naufragado, no século 19, no Mar Báltico, próximo ao arquipélago de Åland, entre Finlândia e Suécia. Para surpresa de todos, as bebidas estavam impecáveis.
Uma das unidades foi arrematada em um leilão, realizado em 2011, por Є 15 mil (o equivalente hoje a quase R$ 91 mil).
De olho em um mercado com grande potencial de expansão, em 2014, a Veuve Clicquot lançou o projeto Cellar in the Sea. Para a primeira experiência, a vinícola submergiu 300 garrafas de champanhe no mesmo Mar Báltico, a 40 metros de profundidade, com objetivo de estudar e comparar o produto amadurecido no ambiente subaquático com o maturado da maneira tradicional nas caves da maison em Reims, no nordeste da França.
Como já descreveu Jean-Marc Gallot, presidente da companhia, as garrafas envelhecidas no ambiente subaquático voltam com “notas terrosas e aromas de cogumelos e trufas”, enquanto as mantidas nas adegas tradicionais conservam "aromas de brioche e pêssego". O experimento Cellar in the Sea permanece ativo e análises sensoriais e técnicas são realizadas periodicamente.
A sede dos consumidores por novidade
O envelhecimento subaquático pode parecer simples. Basta jogar algumas garrafas ao mar e esperar o tempo passar, só que não. A técnica exige muitos cuidados. Todas as vinícolas seguem basicamente o mesmo roteiro. As garrafas são protegidas por gaiolas de aço inoxidável, vedadas com cera e lacradas com arames de aço e rolhas premium para evitar a intrusão de água salgada. O que varia, de uma empresa para outra, é a profundidade e o tempo.
Por falta de pesquisas robustas sobre a ação real das condições do fundo do mar na qualidade das bebidas, a técnica divide opiniões. “É mais uma estratégia de marketing do que um avanço enológico,” afirma Mário Telles Jr., presidente da Associação Brasileira dos Sommeliers – São Paulo (ABS-SP), em conversa com o NeoFeed.
Mario Lucas Ieggli, vice-presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE) traz uma perspectiva técnica. “O armazenamento é responsável por 99% da qualidade final. Se o vinho não for armazenado adequadamente, a experiência final será comprometida,” explica, ao NeoFeed. “E uma boa adega terrestre climatizada — com controle de umidade, temperatura e luz —oferece praticamente tudo o que o fundo do mar proporciona.”
Exceto, como o especialista lembra, a pressão atmosférica. “Ela até pode influenciar no processo de maturação, mas não há estudos conclusivos sobre o quanto isso impacta a evolução da bebida”, diz.
O próprio Adriano Miolo faz questão de frisar a ausência de provas científicas. “Na Miolo, tudo exige muita pesquisa e tempo para avaliar, conhecer cada ambiente e como ele interfere em cada vinho", faz questão de reafirmar.
Mas ele, como Ieggli, reconhece: a técnica tem seu apelo. “O consumidor está sempre em busca de novidades e experiências únicas. O inusitado desperta curiosidade, e isso cria espaço para explorar diferentes formas de apresentar o vinho”, diz o empresário.
A ousadia dos produtores tem sido recompensada pela sede dos clientes por novidade. Jean Carraro comemora: “Começamos o projeto como uma brincadeira entre amigos, para podermos consumir algo diferente, e acabou virando um grande negócio”.