A história parece familiar. E é. Mas não chegou a existir. Pelo menos dessa vez. “Cupertino Raposo e seus aliados de sedição souberam quase ao mesmo tempo que a tentativa tinha fracassado. Os jovens oficiais republicanos do Exército — tenentes e capitães da Artilharia e da Infantaria, além de alferes-alunos do Colégio Militar —, desde cedo de prontidão para ordenar à tropa que marchasse sobre os objetivos, recolheram-se a seus quartéis, ficaram quietos e se safaram”.

A descrição está no saboroso Os perigos do imperador – Um romance do Segundo Reinado, de Ruy Castro ( Companhia das Letras), que, com sutileza, remete a como os militares brasileiros, em seu histórico de golpes, acreditam ter em suas mãos a capacidade “salvar” o país.

O livro, na verdade, é uma espécie de brincadeira com o leitor mais exigente, que se inquieta ao querer saber até onde ele cria fatos, situações e diálogos e o que realmente aconteceu – ou mistura um pouquinho de cada coisa.

Está correto, por exemplo, o foco central da trama: Dom Pedro II fez mesmo uma longa viagem de três meses aos Estados Unidos, em meados de 1876, para participar das comemorações do primeiro centenário da independência naquele país, celebrado em 4 de julho. Mas é invenção que nesse passeio ele tenha sofrido um atentado, fato que é marcante no desfecho do livro.

A parte verdadeira dessa viagem nunca foi de grande interesse dos biógrafos do segundo e último monarca brasileiro. Mas se tornou uma obsessão para Ruy Castro (leia a entrevista), que ele usa como tema para fazer uma trama policialesca.

Tem entre seus personagens o poeta republicano Sousândrade, que à época vivia em Nova York e acabaria por desistir de participar da tentativa de matar o monarca e denunciaria o cabeça da conspiração à polícia, com a ajuda de outra figura importante na narrativa, o jornalista americano James O'Kelly, repórter do New York Herald e responsável pela cobertura do monarca em seu país.

A história nasceu de uma fascinante garimpagem de livros e documentos, que Ruy descreve como só ele sabe fazer na apresentação. O biógrafo de Carmen Miranda, Nelson Rodrigues e Garrincha a construiu como uma espécie de colcha de retalhos em que o narrador alinhava o cotidiano da corte em meio a fofocas, intrigas, conspirações e a vida na Corte do Imperador.

O humor dá o tom de diversas formas. Como na descrição do protagonista: “O imperador seria ainda mais imponente se sua voz fosse grave e retumbante para fazer jus ao corpanzil. Mas era fina, frágil, cantante, o que, combinando com os olhos cor de água-marinha, lhe dava ares quase infantis, como os de um bebê gigante”.

Descreve o impiedoso contador da história: “Os pés, sim, é que eram até maiores do que o corpo exigia, e dizia-se que ninguém ocupava tanto espaço em solo pátrio quanto ele. Cada passo seu, sempre apressado, no ritmo que o Exército francês chamava de marche-marche, atravessava quase dois metros do território nacional, e ainda bem que o Brasil era tão grande”. Suas mãos também eram enormes, o que o obrigava a encomendar luvas sob medida.

De uma cultura fora do comum, Dom Pedro II vivia sob a tensão de ser destituído do trono, o que aconteceria em novembro de 1889, com dedos, mãos e pés de militares até mesmo montados a cavalo, já os tanques seriam uma invenção do século seguinte – e ficariam para 1964.

Dele, aliás, são os diários da época da viagem e que pertencem ao Arquivo do Museu Imperial. Essas anotações são reproduzidas a partir do dia 31 de maio de 1875: “A Corte está em pulgas desde que, há alguns dias, num instante em que sem querer me despistei, deixei escapar minha intenção de viajar no ano vindouro aos Estados Unidos para as comemorações do Centenário da Independência daquele país”.

A partida de Dom Pedro II para a América em 26 de março de 1876 foi anunciada com dez meses de antecedência, portanto. Nesse período, a Corte não conheceu outro assunto, contra ou a favor, como descreve o narrador. Sua parada final seria a Europa – Paris, Viena ou Madri, que tinham tronos ocupados por seus primos e de quem ele era íntimo.

Do Rio, seguiria primeiro para os Estados Unidos — “aquela petulante república do Norte, onde a civilização e a selvageria eram separadas por um fio de cabelo. Ou pelo couro cabeludo inteiro, no caso de o sujeito ter sido escalpelado pelos apaches”.

A imprensa, aliás, se faz presente entre coberturas, conspirações e manipulações políticas dos fatos, muitas vezes atabalhoadas. As alfinetadas nos jornais estão presentes em várias passagens do livro: “A reportagem com a notícia da tentativa de assassinato de Dom Pedro II chegou às agências telegráficas do Rio depois que estas já tinham encerrado o expediente. Só foi lida na manhã seguinte e não precisou de mais do que alguns minutos para espalhar-se pela Ouvidor e, em consequência, pelo resto da cidade”.

O que o leitor deve saber é que Dom Pedro II, de fato, sofreu um atentado quatro meses de sua derrubada do poder. Aconteceu em 15 de julho de 1889. na atual Praça Tiradentes. Ele tinha acabado de assistir o concerto da violinista Giulietta Dionesi no Teatro Sant'Anna (hoje Teatro Carlos Gomes), no Rio de Janeiro, e, na saída, um jovem bem-vestido atirou contra sua carruagem, aos gritos enaltecendo a República. Felizmente, não atingiu o monarca.

O atirador foi mais tarde capturado pela polícia. Era Adriano Augusto do Valle, que estava embriagado em um bar, onde diante de outros fregueses, vangloriava-se de seu feito. Também afirmava que o faria de novo, por ter errado o disparo. Por fim, como se sabe, Dom Pedro II foi derrubado por uma conspiração civil-militar. Ao se comemorar 200 anos da Independência proclamada por seu pai, a mesma ameaça se desenha no país.

Serviço:

Os perigos do imperador – Um romance do Segundo Reinado
Ruy Castro
200 páginas
Impresso:R$ 69,90
Ebook:R$ 39,90
Lançamento:11/8/22
Companhia das Letras