Faltam poucos dias para o escritor, sociólogo e historiador Jorge Caldeira vestir o fardão verde com bordados dourados da Academia Brasileira de Letras. Sua posse oficial da cadeira número 16, que era ocupada pela escritora Lygia Fagundes Telles, acontece na próxima sexta (25), no Rio de Janeiro.

Caldeira, de 66 anos, é paulistano, exerceu o jornalismo e, na década de 1980, participou do governo de Franco Montoro em São Paulo, um dos líderes do processo de redemocratização.

Nos dezessete livros que publicou, por várias editoras, foi do samba ao futebol, da biografia ao ensaio e talvez o mais conhecido seja “Mauá, Empresário do Império” (Companhia das Letras), sobre a vida do banqueiro e industrial que era visconde.

Os mais recentes – o best-seller “História da Riqueza no Brasil”(Estação Brasil) e “Brasil, Paraíso Restaurável” (Sextante) – pensam o Brasil do ponto de vista histórico e o futuro como um reencontro com a utopia do país que pode dar certo.

Também se dedicou ao estudo da globalização do futebol por meio da trajetória de Ronaldo Fenômeno com "Ronaldo Glória e Drama no Futebol Globalizado" (34). Alheio às preferências futebolísticas da maior parte dos paulistanos, Caldeira é torcedor fanático da Portuguesa dos Desportos, clube fundado no início do século passado por seu avô, um médico de Botucatu, que não tinha nenhum parente português.

Nesta entrevista ao NeoFeed, ele conta que pretende entrar de forma discreta na Academia e fala do Brasil na visão de um historiador que parou só de se ocupar do passado para se arriscar no futuro.

Você começou com samba, com o livro “Noel Rosa, de Costas para o Mar” (editora Brasiliense) e logo depois biografou um empresário. Por quê?
A minha formação era para que eu fosse sociólogo do desenvolvimento.

Como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
É, sou cria direta do Fernando Henrique. Esse era um problema que estava na cabeça da geração dele: como fazer o desenvolvimento do Brasil? E esse era o meu caminho, para isso fiz minha formação em ciência política, mas no meio tudo mudou. Comecei a trabalhar aos 18 anos na Editora Abril. Lá fui fazer uma história da música popular brasileira, uma enciclopédia. Para isso, entrevistei todos os grandes músicos. Naquela época, 1970 e pouco, estava todo o mundo vivo: Ismael Silva, Tom Jobim e os que continuaram como Caetano, Chico, Milton, Roberto Carlos. Conheci todos e tinha que escrever uma biografia de cada um a cada 15 dias. Fiquei dois anos fazendo isso e acabei tendo um convívio e um conhecimento significativo de música popular, que me permitiu pensar: opa, aqui tem alguma coisa.

Foi isso que te levou ao Noel?
Sim, porque naquela época não tinha praticamente esse tipo de livro. A biblioteca de samba tinha sei lá, uns 15 livros. Era um conhecimento que precisava ser atualizado. E meu mestrado foi sobre a formação do samba. Daí fui trabalhar em governo, em jornal, na parte de economia, e muito lentamente fui voltando para minha formação original.

Como você chegou ao tema empresarial?
Estudar a música popular me ajudou muito a entender o lado informal da economia brasileira. Aí comecei a ver que tinha muitas coisas que não estavam escritas sobre história econômica. Uma dessas coisas era o papel do empresário na vida brasileira. A biografia de um empresário não é muito diferente da de um músico popular. Porque naquela época, em geral, ele era desprezado como figura formadora da nação.

"A biografia de um empresário não é muito diferente da de um músico popular. Porque naquela época, em geral, ele era desprezado como figura formadora da nação"

De que maneira?
O empresário era tido como um cara contrário ao progresso, produtor de desigualdades, etc. e tal. A ideia de que o desenvolvimento depende deles não era muito querida pela minha geração. Comecei a ver que havia toda uma história econômica que era informal. Fiado, por exemplo, que é uma coisa que todo o mundo sabe o que é mas não existe um livro sobre o assunto, em português, até hoje.

Você fala dessa relação de comprar e não pagar na hora?
Sim, de comprar fiado no armazém, que todo o mundo faz. Não tem um livro a respeito e a economia brasileira foi inteira montada sobre isso. Então fui procurando esse tipo de coisa. A vida é assim, você acha caminhos onde parece que não existem.

O Mauá foi um pioneiro da industrialização brasileira e hoje se fala que o Brasil vive um processo de desindustrialização. Como você vê essa questão?
O Brasil vai se reindustrializar com o dinheiro ambiental e com energia renovável barata. O país tem dois ativos impossíveis de serem deixados de lado na economia do futuro. Um é a natureza mais produtiva do mundo – água, plantas, vento – tudo isso produz energia. Segundo, tem 50% das florestas do mundo e a floresta está valendo cada vez mais dinheiro.

Esse é o tema do teu livro “Brasil, Paraíso Restaurável”. Então você quer dizer que o Brasil tem jeito?
Óbvio que tem. Com tudo de ruim que aconteceu nos últimos 50 anos ainda é uma das grandes economias do planeta. E olha que não tem muita dificuldade para ser a terceira ou a quarta. Não dá para dizer que amanhã cedo vai fazer isso, porque não é possível, mas daqui uns 15 anos…

"(O Brasil) com tudo de ruim que aconteceu nos últimos 50 anos ainda é uma das grandes economias do planeta. E olha que não tem muita dificuldade para ser a terceira ou a quarta"

Isso também depende de uma política...
O Lula acabou de falar na Cop-27 e o que ele está dizendo? Gente, vamos transformar a Amazônia em fonte de equilíbrio do planeta, em fonte de renda para o Brasil. Tem dinheiro para fazer isso no mundo inteiro. Só o fundo Amazônia são 3 bilhões de dólares que estavam aí e foram congelados porque o Bolsonaro não quis deixar usar. O mundo tem 40 trilhões de dólares de dinheiro ambiental para gastar no Brasil. É 20, 25 vezes o PIB do Brasil. É muito dinheiro.

Você acha que apesar de todos os problemas econômicos dos últimos tempos, da inflação, a gente tem razões para ser otimista com o novo governo, que traz uma visão ambiental mais moderna?
Os fundamentos para a coisa dar certo são os mesmos que eu escrevi nesse livro em 2020. Não é o Lula que vai fazer isso funcionar ou não. É o planeta que está organizando uma economia e isso vai ser bom para o Brasil. Não tem a ver com Bolsonaro ou Lula. A matriz energética brasileira não muda em função disso. E é a mais renovável do planeta. Já era antes de chamarem de energia renovável. Isso é uma questão estrutural, não tem a ver com o governo do dia.

"Não é o Lula que vai fazer isso funcionar ou não. É o planeta que está organizando uma economia e isso vai ser bom para o Brasil"

Pela tua formação, você sempre pensou e refletiu sobre o passado e, de repente, começou a falar do futuro. Como foi esse processo?
Durante muitos anos quando me perguntavam do futuro eu dizia: sou um historiador, meu tema é o passado. Sobre o futuro chamem um economista. Mas eu fundei a primeira revista de meio ambiente no Brasil, em 1983.

Qual?
Pau Brasil. Ajudei o Montoro (Franco – governador de São Paulo entre 1983-87) a fazer a secretaria do meio ambiente. Acompanhava essa área de longe, mas tinha um conhecimento. Desde 2014 comecei a militar um pouco mais porque precisava desse tipo de conhecimento, que mudou muito nos últimos dez anos no mundo. A mudança econômica da questão ambiental tem menos de dez anos no planeta. O Acordo de Paris é de 2016, a meta de carbono dos governos é de 2019, 2020.

Tudo isso deriva de um novo momento, então?
Sim, estou falando de coisas que são muito recentes, ligadas à percepção de que a natureza tem valor. Em 2015 escrevi “Teoria do Valor Tupinambá” (artigo publicado na Ilustríssima, Folha de S.Paulo). É um diálogo entre um francês e um chefe tupinambá na baía da Guanabara em 1557. Nele, o chefe tupinambá explicava como deveria ser a economia e dizia o seguinte: Você preservando a natureza qualquer economia é boa porque a terra te dá o que é preciso para continuar pelas próximas gerações. Não preservando é ruim. Faz sentido pra você hoje ou não?

Sim.
Pois é, ele foi tratado como um imbecil, como um animal exótico, um cara que não sabia nada. Você vê que essas coisas também tem raízes históricas. Essa é uma mudança histórica. Se o significado de uma coisa muda 490 anos depois é porque o mundo tá mudando. E a matriz energética do Brasil tem a ver com sua história. Aqui não tinha carvão nem petróleo. Por isso que a matriz é limpa: carvão vegetal, água e etanol que só existe aqui.

Essa foi uma percepção crescente para tua visão de futuro?
Sim, mas eu também tive netos. Aí você começa a ver diferente, a sentir que tem obrigação de falar, de entrar no debate. Foi meio assim. Escrevi o livro com duas meninas de 20 anos, mais novas que minha filha, que transitam nesse mundo de outra maneira e transitam nessa nova realidade.

Qual é o significado para você de ter se tornado um imortal – você já estava na
Academia Paulista de Letras – e de que maneira espera contribuir com a ABL?
É bom ir para a Academia porque só entra quem é eleito. Isso significa ser reconhecido pelo grupo, o que é uma delícia. Mas ali eu estou começando. Você sabe: casa nova... você não é dono da casa, entra e tem gente lá há muito tempo. Primeiro vou aprender a conviver com todo o mundo. A Academia faz muita coisa, tem muita estrutura. Ela mantém o vocabulário da língua, o que é uma coisa fundamental, tem uma sessão de lexicografia muito forte, um arquivo espetacular, que é coisa pra ser aproveitada. Tem uma biblioteca, uma estrutura de pesquisa muito boa e tem as pessoas que estão sempre com ideias. O que vai acontecer lá, te digo depois.