Em 2018, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) passeava pelo Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE), prédio de sua autoria, aliás, em visita à mostra Esculturas para Ouvir. A exposição em São Paulo reunia obras sonoras de diversos artistas. Observando os trabalhos, ele passou a mão em Gambiarra, de Amelia Toledo, fazendo as conchas penduradas em um cordão tilintarem. “Precisamos fazer uma exposição da Amelinha aqui”, disse ele.
Amelia havia morrido há poucos meses, em 7 de novembro de 2017, aos 90 anos. Agora, seis anos depois, o desejo de Mendes da Rocha, ou Paulinho, como Amelia o chamava, finalmente se concretiza. A exposição Paisagem Cromática reúne cerca de 100 obras da artista e está em cartaz no MuBE até 4 de agosto, colocando as obras dos dois amigos em contato.
Quem conta essa história é o artista e um dos curadores da mostra, Fernando Limberger. "Nossa intenção era estabelecer um diálogo muito próximo entre Amelia e Paulo ", diz, em entrevista ao NeoFeed. "Não há intermediação de painéis ou construção de qualquer cenografia. Os trabalhos estão plasmados sobre à arquitetura.”
Um exemplo é O País das Pedras Verdes, onde rochas de pegmatito, xisto verde e quartzo verde foram colocadas no lago de carpas que circunda o museu. Para um desavisado, pode parecer que as pedras sempre estiveram ali. Mas, não, ali está a obra de uma artista incontornável da história da arte brasileira.
Com participação em diversas Bienais Internacionais de São Paulo, Amelia tem uma vasta produção e nunca se prendeu a uma técnica ou movimento. Realizou pinturas, trabalhos de teor mais político durante a ditadura militar, esculturas, land art, projetos para espaços púbicos e instalações pioneiras que envolviam a participação do público.
A camuflagem na arquitetura, como na obra instalada no MuBE, é característica de algumas de suas intervenções urbanas. Como o trabalho de granitos coloridos na estação do metrô Arcoverde, em Copacabana, no Rio de Janeiro, que cria um arco-íris no túnel entre o saguão e as plataformas. Para ela, o uso de pedras e cores poderia alterar a relação do público com o ambiente.
Amelia trabalhou, como desenhista de projetos, no escritório do arquiteto Vilanova Artigas (1915-1985), conhecido por marcos da arquitetura brasileira como o estádio do São Paulo Futebol Clube, no Morumbi, e o Edifício Louveira, em Higienópolis, ambos na capital paulista. Foi lá que ela conheceu Mendes da Rocha.
Assim como Artigas, o arquiteto era adepto dos conceitos da arquitetura brutalista, de valorização da integração dos espaços, a ausência de ornamentos e o uso honesto dos materiais e elementos arquitetônicos.
O ambiente cavernoso do museu, quase sem nenhuma iluminação natural, porém, não dialogava muito com a obra da artista. “Amelia é uma artista solar, que fala de elementos que vemos na natureza", pontua o curador.
Estética científica
E como iluminar o ambiente projetado pelo arquiteto sem interferir em sua obra? Limberger assina a curadoria com a geóloga Daniela Gomes Pinto. E a seleção de obras foi feita a partir de dois eixos: a paisagem e a cor, temas centrais na produção de Amelia. E cada um trouxe sua expertise para a exposição, inclusive para a expografia.
Para trazer luminosidade ao MuBE, ele cobriu o piso do museu com uma areia clara, sem tingimento, para iluminar os trabalhos de Amelia. O “tapete” proporciona ainda um ritmo mais lento e contemplativo aos visitantes. É impossível caminhar apressadamente pelo espaço. O contato dos pés com a areia desperta o tato e a atenção ao observar e interagir com as obras — em quase todas é possível tocar.
A participação ativa do espectador é uma característica marcante do trabalho de Amelia, sempre interessada em explorar o lúdico e o despertar dos sentidos. Em Dragões Cantantes, por exemplo, rochas perfuradas pela ação da água do mar e dos rios estão sobre um pedestal. O visitante pode, com outra pedra, bater sobre a rocha, fazendo o som ressoar pelo museu.
O fascínio pelas pedras vinha de criança, quando, aos quatro anos, ela ganhou uma coleção da mãe. Filha de pais cientistas, a artista dizia que praticamente nasceu dentro de um laboratório.
O interesse pela “estética científica” também se reflete em suas obras. Gluglu, uma escultura de vidro soprado contendo água e sabão, remete aos experimentos físico-químicos feitos em balões de vidro.
Discos Táteis, com circunferências de plástico transparente, recipientes para água e óleo coloridos, lembram os contadores de colônias — instrumentos usados para análise de microrganismos.
Arte terapia
Amelia nunca pertenceu formalmente à nenhuma vertente artística. Aos 15 anos, abandonou a escola para ter aulas com a pintora modernista Anita Malfatti (1889-1964). Depois com o artista japonês Yoshiya Takaoka (1909-1978).
No entanto, se dizia alinhada com os conceitos de arte terapia que Lygia Clark (1920-1988) desenvolveu a partir dos anos 1970. “Nós compartilhamos o interesse pela cura por meio da expansão da sensorialidade”, dizia a artista.
Com Takaoka, ela aprendeu que mesmo para dar uma pincelada era preciso um impulso vital. A energia concentrada no ventre, logo abaixo do umbigo, seria conduzida até a mão, ensinava o mestre. Amelia era uma estudiosa também da força dos minerais, das cores e suas conexões com os chakras e a física quântica.
No MuBE, de pés descalços, o visitante é convidado a experimentar a natureza criada pela artista. E, talvez, sair reconectado consigo mesmo e com a energia da vida. Afinal, como Amelia dizia: “Se as pessoas conhecessem o efeito de uma pedra como o quartzo rosa na pacificação e nas crises do coração tudo seria diferente”.