Houve um tempo em que os leitores de jornais enfrentavam enorme dificuldade para escolher qual título assinar ou comprar na banca tamanha era a quantidade de excelentes cronistas disponível em diferentes títulos da imprensa nacional.
Eram autores do primeiro escalão da literatura brasileira: Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Sérgio Porto, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Millôr Fernandes, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos, Antonio Maria e, claro, Carlos Drummond de Andrade.
Contemporâneos de uma geração brilhante da arte da escrita, nas décadas de 1950 e 1960, eles tornavam a vida mais divertida e inteligente. Essa era a impressão que se tinha deles. Com delicadeza, percepção e talento literário, além de veia poética, esses nomes consagrados faziam leituras deliciosas dos hábitos e costumes dos brasileiros. O tempo passou e os anos dourados da crônica diária quase sumiu — ainda bem que nos resta Ruy Castro.
Recém-lançada pela Record, A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969, de Drummond, é uma oportunidade para reviver ou experimentar pela primeira vez o prazer proporcionado por esse formato curto de texto, quase sempre ligado ao momento de vida de seu autor.
Por se tratar de um dos grandes poetas e escritores do país de todos os tempos - Drummond é considerado o poeta maior do Brasil e foi definido pelo crítico Otto Maria Carpeaux como o primeiro grande “poeta público do Brasil” - o que ele escreveu vai além disso.
Como diz Luís Henrique Pellanda, organizador da antologia, o livro funciona como uma espécie de lente que amplia nossa compreensão acerca do tempo e do cotidiano, enquanto reflete a visão de Drummond sobre o país e o século 20.
Em seu conjunto, o livro é quase um raio-x de um dos períodos mais intensos e conturbados da história brasileira — quando o Brasil ganhou nova capital, trouxe duas Copas do Mundo para casa, viu nascer a bossa nova, teve um presidente da República que renunciou e outro que acabou deposto por um golpe militar.
Drummond opinou sobre tudo isso com leveza e humor, sem nunca deixar a ironia de lado, uma de suas marcas. Apesar de o período em que essas crônicas foram escritas estar claramente marcado em seus conteúdos, mesmo distante no tempo, as observações e experiências do escritor são universais e se mantêm atuais, observa Pellanda.
É justamente nesse terreno fértil e movediço, escreve o organizador, “no qual as coincidências se multiplicam com o avanço das décadas e a evolução da mentalidade de leitores cada vez mais diversos, que uma crônica escrita no Brasil, há 70 anos, pode ganhar novos sentidos, alheios e até mesmo estranhos ao projeto e ao desejo original de seu autor”.
São 150 crônicas, de duas ou três páginas cada, escolhidos entre os melhores de aproximadamente 2 mil textos, que Drummond escreveu, ao longo de 15 anos, para a coluna Imagens, do jornal carioca, extinto em 1974.
Embora tenha guardado todas com zelo em seu arquivo pessoal até morrer, em 1987, Drummond nunca pensara em publicar os textos.
Produzida para jornais, frequentemente na correria do fechamento das edições, o escritor definia a crônica como um gênero “menor e engraçado” — um “ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”.
O próprio Drummond, no entanto, fazia a ressalva: o segundo caderno, as páginas de cultura, onde esses textos eram publicados, teria "a função de corrigir o primeiro" - onde se concentrava os noticiários de economia e política.
Como cronista, o poeta dizia representar o papel de "um palhaço, um jongleur [malabarista, em francês], dando saltos e cabriolas, fazendo molecagens" — e, lembra Pellanda, "o sorriso do leitor seria sua maior recompensa". Drummond defendia não ter outro objetivo além do de encarnar "alguém que procurava amenizar o aspecto trágico, sinistro, do mundo em que vivemos".
Por intermédio de A intensa palavra, descobrimos que como colunista de jornal, o escritor expressava nos textos tudo o que temia e pressagiava em vários momentos-chave de nossa história recente.
Como observa Pellanda, às vezes ele ressurge com opiniões questionáveis, às vezes se apresenta tomado de acentuada doçura. Assim, escreveu sobre Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, a construção de Brasília, a Guerra Fria e o golpe de 1964.
E, por fim, sobre o endurecimento do regime militar que levou sua própria coluna a um desenlace melancólico, com a prisão de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, dona do Correio, e o próprio jornal se tornando alvo de um atentado a bomba, maquinado por agentes da extrema direita.
Na escolha dos textos, organizador optou pelos inéditos em livro e por aqueles nos quais Drummond aparece “mais claramente como o grande autor que é”. O poeta escreveu sobre tudo. Política e economia, moda e comunicação, ciência e tecnologia, arte e cultura, natureza e urbanidade, amor e morte, religião e justiça, emprego e economia, educação e leitura, crime e violência policial, sexualidade e infância, memória e progresso.
Em comum, afirma Pellanda, o leitor de 2024 e aqueles dos anos de 1950 e 1960 "ainda têm um mesmo conjunto precedente de circunstâncias históricas e culturais que nos reúne (ou aprisiona) num mesmo destino de brasileiros, o que não é pouco".
Dessa forma, ele conclui: "O Drummond poeta, assim me parece, é universal; o Drummond cronista, porém, exige de nós um sentimento não só do mundo, mas sobretudo do país”.