O cinema está mais vivo do que nunca quando se observa o entusiasmo como o diretor e roteirista americano Quentin Tarantino lida com essa indústria. Raros cineastas na atualidade provocaram badalação mundial a cada novo filme como ele, que levou dois Oscars por Pulp Fiction – Tempo de violência (Melhor Roteiro Original, 1995) e Django Livre (Melhor direção, 2013) e os Globos de Ouro para melhor roteiro desses dois longas citados e de Era uma vez em Hollywood (2020).
Tarantino é Tarantino, dizem. Único e surpreendente, sempre. Tem estilo, criou uma marca, fez e faz escola. Todo mundo quer copiá-lo. Alcançou a fama por seus roteiros não lineares, com diálogos ricos e diversos, em que faz uma mistura irônica de humor e violência. Seus primeiros roteiros filmados, Amor à queima roupa e Assassinos por natureza abriram várias portas para ele.
Toda a teoria que cerca o tarantinismo, felizmente, acaba de virar um elogiado livro que sai no Brasil pela Editora Intrínseca. O diretor, que chega aos 60 anos em 2023, não decepciona com Especulações cinematográficas, que traz tudo que os fãs esperavam e vai além: é uma obra escrita com despojamento, linguagem irreverente, descompromisso com regras de escrita e, principalmente, o humor que se costuma ver nos seus filmes. E muita, muita paixão pelo cinema.
O volume era um antigo sonho do diretor de escrever algo representativo sobre filmes – e revela sua rigorosa formação intelectual, uma perspicácia ímpar e boas doses de humor sarcástico.
O livro reúne análises de obras subestimadas do gênero policial e que ele, de tanto citá-las como referência para suas produções, voltaram a ser vistas e reinterpretadas. A lista inclui títulos conhecidos como Taxi Driver (1976), Perseguidor implacável (1971), Amargo pesadelo (1972) e Os implacáveis (1972). Outros, nem tanto, como A quadrilha (1973), Irmãs diabólicas (1973) e Daisy Miller (1974).
O diretor faz anotações de direções, produções, escalações de atores e técnica e atuações, aponta outros caminhos possíveis para cada filme e mistura tudo com suas memórias pessoais e profissionais. Na primeira e mais longa parte do livro, conta a experiência de frequentar principalmente o Cine Tiffany, a partir dos sete anos de idade, levado por seus pais toda semana para ver produções adultas que ele nem sempre compreendia. Essas memórias são intercaladas por comentários minuciosos sobre as tramas que mais o marcaram.
Mesmo quando não eram bons, escreve ele, os filmes da contracultura de 1968 a 1971 eram empolgantes: “Meus jovens pais iam muito ao cinema naquela época, e geralmente me levavam junto. Não tenho dúvida de que eles poderiam encontrar alguém para ficar cuidando de mim (minha avó Dorothy costumava estar disponível), mas, em vez disso, permitiam que eu os acompanhasse. Em parte, porém, só faziam isso porque eu sabia quando tinha que ficar de boca fechada”.
Durante o dia, o pequeno Quentin tinha permissão para ser um “moleque normal (irritante)”. Assim, “podia fazer perguntas idiotas e ser infantil e egoísta, como a maioria das crianças”. Nem sempre ele gostava ou curtia os filmes: "Mas eu sabia que, enquanto eles assistiam ao filme, ninguém dava a mínima se eu estava ou não me divertindo. Tenho certeza de que, no começo, em algum momento, devo ter dito algo como: 'Ah, mãe, isso é muito chato'”.
E ela, com certeza, responderia, segundo ele: “Olha, Quentin, se você vai ficar enchendo o saco toda vez que a gente te levar para sair à noite, da próxima vez vai ficar em casa. Se preferir ficar vendo TV enquanto eu e seu pai saímos para nos divertir, tudo bem, é isso que nós vamos fazer da próxima vez. Você decide”.
Ele decidiu pelo cinema. Passou a acompanhar as entregas do Oscar, a memorizar todos os concorrentes ano a ano. “Vi praticamente todos os filmes dos grandes estúdios daquele período”. E ele tinha apenas nove anos de idade.
Não se esqueceria do filme daquela época com o qual não consegui lidar: Bambi, o desenho animado da Disney: “Bambi se perdendo da mãe, ela levando um tiro do caçador e aquele incêndio tenebroso na floresta mexeram comigo mais do que qualquer outra coisa que eu tivesse visto em um filme. Só em 1974, quando assisti a Aniversário macabro, de Wes Craven, alguma coisa chegou perto daquela experiência”.
Para ele, “as cenas de Bambi vêm arruinando a cabeça de crianças há décadas, mas agora estou bastante convicto de que sei por que Bambi me afetou de forma tão traumática.” O fato de Bambi perder a mãe atinge qualquer criança, diz, mas “foi o fato de o filme ter se tornado trágico de uma maneira tão inesperada que me pegou com tanta força. Os anúncios na TV não davam a menor pista sobre a verdadeira natureza do filme”.
Depois, Tarantino trabalhou como lanterninha no Pussycat Theatre de Torrance e, em seguida, decidiu estudar cinema. A análise fica mais densa quando Tarantino faz um inventário imprescindível para quem se interessa sobre a história do cinema em “A nova Hollywood nos anos 1970”.
Ele conta histórias de bastidores como o jantar de Dennis Hopper, que acabara de fazer Sem destino, com o jovem colega Peter Bogdanovich (A última sessão de cinema) e o lendário diretor da Velha Hollywood George Cukor. Enquanto comiam, Hopper, ao que parece, fez uma brincadeira com a geração do veterano, quando disse: “Nós vamos enterrar vocês”.
Bogdanovich e sua esposa ficaram horrorizados ao verem aquele grande mestre do passado, cuja obra reverenciavam, ser tratado com tão escandalosa falta de respeito. “‘Odiei Dennis por ter feito aquilo’, diria Peter para mim décadas depois. E, se a história realmente aconteceu como foi contada, Hopper merecia ter levado um soco na fuça”, conta Tarantino.
De qualquer modo, acrescenta, esse episódio ilustra bem a maneira como a Hollywood Hippie de Dennis tratava a Velha Hollywood, que começava a abrir passagem para uma Nova Hollywood, cheia de cineastas com uma perspectiva antissistema.
Outro momento saboroso é “Especulando sobre cinema — E se Brian De Palma tivesse dirigido Taxi Driver no lugar de Martin Scorsese?”. Não por acaso, esse filme é um dos preferidos de Tarantino. Foi a oportunidade para contar mais histórias de bastidores com sua participação.
O livro termina com um dos filmes de terror mais trash (de baixo orçamento e exagerado em violência) de todos os tempos e adorado por Tarantino: Pague para entrar, reze para sair, de 1981. Sim, aquele mesmo que tem um assassino à solta em um parque de diversões.
E o que vem em seguida são histórias deliciosas sobre a carreira de seu diretor, Tobe Hooper, que, garoto ainda, realizou O massacre da serra elétrica e Poltergeist, com Steven Spielberg. Foi um pretexto para Tarantino dizer: “Para mim, O massacre da serra elétrica é um dos raros filmes perfeitos que existem. São muito poucos os filmes perfeitos”. Argumentos não lhe faltam para justificar essa afirmação.
Serviço:
Especulações cinematográficas
De Quentin Tarantino
Editora Intrínseca
400 Páginas
Livro impresso: R$ 89,90
e-book: R$ 62,90