No sábado, 2 de outubro, quando o estado de São Paulo já tinha uma morte confirmada por intoxicação de metanol e cinco sob investigação, a chef Bel Coelho publicou uma decisão nas redes sociais. A partir daquela data, seus restaurantes, o Clandestina e o Cuia, ambos na capital, só trabalhariam com destilados de pequenos fabricantes nacionais.

O movimento se espalhou. No dia seguinte, um post semelhante surgiu no perfil do restaurante de cozinha francesa La Casserole, que funciona há 71 anos no centro paulistano e mantém, escondido nos fundos, o bar de coquetelaria Infini. Na terça-feira, 7 de outubro, foi a vez do Futuro Refeitório, casa da chef Gabriela Barretto, onde tem destaque a carta de drinques.

A mudança de postura não ficou restrita aos restaurantes e bares. Fundador da destilaria mineira Yvy, uma das escolhidas por Bel Coelho, André Sá Fortes conta ao NeoFeed que novos clientes vieram de carona. “Uma pessoa, que estava organizando um casamento, viu o post da Bel e me ligou, dizendo que resolveu trocar todos os destilados da festa”, diz Fortes.

Ao mesmo tempo em que pôs em xeque uma importante fonte de renda para bares e restaurantes, a tragédia desencadeada pelas adulterações representa uma janela de oportunidade para as pequenas destilarias nacionais que, há anos, travam uma luta de Davi e Golias com as gigantes multinacionais.

Criador do Beg Gin, lançado em 2015, Arthur Flosi admite que o preconceito sempre foi um desafio. “Criamos a marca em inglês para confundir o cliente. Ele achava que era importado, comprava, gostava e, quando lia o rótulo com atenção, descobria que era nacional. Geramos uma disrupção na marra”, afirma Flosi.

Muitas pequenas destilarias surgiram na mesma época e se fortaleceram durante a pandemia, quando houve um boom do gin nacional. Mas a produção artesanal de destilados, que tradicionalmente se limitava à cachaça, já foi muito além do gin — já temos vodcas e uísques premiados internacionalmente, chancelados por importantes profissionais.

Com apenas seis anos de vida, a destilaria familiar Lamas, de Matozinhos, em Minas Gerais, firmou parceria com Maurício Porto, um dos maiores especialistas brasileiros em uísque, proprietário do bar Caledônia Whisky & Co. e autor do site O Cão Engarrafado. A collab já rendeu seis rótulos.

O mais recente, The Dog’s Bollocks III, é um single malt finalizado em três diferentes barris. “Acho inacreditável que uma empresa tão jovem tenha rótulos tão sofisticados. Eles têm um know how que você não vê em outros países que se propõem a produzir uísque, como a Argentina”, Porto compara, em conversa com o NeoFeed.

Com 30 rótulos em linha, a Lamas produz 30 mil litros de uísque por ano, que chegam ao consumidor final custando entre R$ 170 e R$ 500 a garrafa. Segundo a diretora executiva, Luciana Lamas, a bebida responde por 65% do faturamento — gins, runs, vodcas, licores, cachaças e coquetéis prontos complementam o portfólio.

“Como o brasileiro sabe pouco sobre uísque e ainda se baseia em conceitos escoceses que não se aplicam à produção nacional, investimos muito em concursos internacionais e no treinamento dos bares e restaurantes. Os garçons precisam saber falar sobre nossos rótulos”, diz Lamas ao NeoFeed.

Shots de vodca

Fundada em 2012, nos arredores de Blumenau, em Santa Catarina, a Kalvelage Distillery tem sua vodca Vibe — que levou duplo ouro na San Francisco World Spirits Competition 2025 — na carta do bar Frangó, um dos endereços mais tradicionais da boêmia paulistana.

Segundo o sócio Norberto D’Oliveira, o Norba, a bebida já era o ingrediente base das caipivodkas, mas só agora a clientela tem se preocupado em perguntar de onde ela vem.

O drinque "Café Soçaite", do Infini Bar, leva uísque produzido pela destilaria Lamas, no interior de Minas Gerais (Foto: Bruno Geraldi)

Produzido em Campinas, no interior paulista, o Beg Gin recebeu o nome em inglês para vencer a resistência dos consumidores brasileiros em relação ao gin nacional (Foto: Divulgação)

Para André Sá Fortes, da Yvy, o maior trunfo das pequenas marcas é a transparência (Foto: Divulgação)

Duplo ouro na San Francisco World Spirits Competition 2025, a vodca Vibe, da catarinense Kalvelage Distillery, entra nos drinques do Frangó, reduto da boêmia paulistana (Foto: Divulgação)

"Se o bartender não conhece a marca [das pequenas destilarias], a informação também demora para chegar ao consumidor", diz a sommelière Patricia Brentzel, dos restaurantes Clandestina e Cuia (Foto: Divulgação)

O consumo de uísques nacionais de alta qualidade ainda é restrito a uma bolha, diz o especialista Maurício Porto (Foto: Divulgação)

“No último fim de semana, por causa das notícias sobre o metanol, precisei tomar shots de vodca na frente de alguns clientes para que se sentissem mais seguros. Depois que provam, eles fazem questão de contar que não tiveram nem ressaca e voltam a pedir”, diz Norba ao NeoFeed.

As vodcas foram a primeira aposta dos irmãos Marcos e Maurício Kalvelage. Já são três rótulos, que custam a partir de R$ 66 no e-commerce próprio. Depois, veio o gin e, desde 2022, os uísques. Mensalmente, a dupla destila de 14 a 20 mil litros, mas já tem capacidade instalada para chegar aos 200 mil litros mensais.

A transparência como trunfo

Na ponta do lápis, os preços dos destilados nacionais são mais altos, mas nem sempre. No caso do gin, os rótulos de entrada da Yvy e da Beg custam praticamente o mesmo que uma garrafa de Tanqueray. Já com os uísques e as vodcas, a diferença cresce. Mas não é só o valor que dificulta o acesso do brasileiro ao trabalho das destilarias locais.

Na opinião da sommelière Patricia Brentzel, responsável pelos restaurantes de Bel Coelho, falta fazer com que a informação chegue à outra ponta.

“Já trabalhei em uma grande indústria e sei como as maiores marcas são ricas. Como têm verba para oferecer benefícios para os bares, promover degustações e eventos, suas marcas chegam fácil aos bartenders", conta ela ao NeoFeed.

"As destilarias menores não têm essa grana e, se o bartender não conhece a marca, a informação também demora para chegar ao consumidor”, complementa Brentzel.

Mauricio Porto faz coro. Para ele, o consumo de uísques nacionais de alta qualidade ainda é restrito a uma bolha — gente que lê sobre a bebida, está sempre bem informada e em busca de novidades. “Nem todo mundo que bebe Macallan sabe da existência de um Lamas”, exemplifica.

Com mais de 50 rótulos nacionais na carta do Caledônia, que custam a partir de R$ 19 a dose, Porto aposta neles para reverter o quadro atual — desde o escândalo do metanol, seu faturamento caiu 60%.

Nas destilarias, a ordem é manter os canais de comunicação abertos. André Sá Fortes, da Yvy, ressalta que o maior trunfo das pequenas marcas é a transparência. “Disponibilizamos laudos de todos os lotes e o consumidor pode falar diretamente com a gente”, garante.

A Beg Gin, que projeta um faturamento de R$ 10 milhões em 2025 e vem crescendo 35% ao ano, tem as portas literalmente abertas. Por R$ 370, é possível fazer um tour pela destilaria localizada em Sousas, distrito de Campinas, no interior paulista, assistir a uma aula, fabricar o próprio gin e levar a bebida para casa. “A pessoa vira quase um advogado da marca”, diz Flosi.

“É triste o que está acontecendo, mas a crise evidenciou a importância da procedência do produto. E isso o artesanal tira de letra”, completa.