Um dos maiores expoentes do expressionismo abstrato – vanguarda artística do pós-guerra, marcada pela primazia da subjetividade e da emoção, que teve ainda Jackson Pollock (1912-1956) como notório representante –, o pintor Mark Rothko era, por vezes, um sujeito irascivo.
Costumava avaliar a reação às suas obras daqueles clientes que iam a seu ateliê. Se não passassem no teste, saíam de mãos abanando, não importa o montante de suas posses.
Em 1958, no auge de sua carreira, Rothko recebeu um convite para criar murais para o restaurante Four Seasons, em Nova York. Pelas pinturas, receberia US$ 35 mil, algo em torno de US$ 365 mil atualmente.
Socialista, avesso à epítome do capitalismo que o restaurante e seu endereço, o arranha-céu Seagram – projetado por Ludwig Mies van der Rohe – simbolizavam, Rothko finalizou os trabalhos, mas rompeu o contrato.
À época, afirmou que “qualquer pessoa que iria comer aquele tipo de comida, por aquele tipo de preços, nunca verá um dos meus quadros”. Em tempo: o Four Seasons foi fechado em 2016 e reaberto em 2018, com projeto de interiores do arquiteto brasileiro Isay Weinfeld.
Em 1970, nove daqueles murais foram parar na Tate Gallery, de Londres, onde estão acomodados numa sala só para eles. Até 2 de abril de 2024, no entanto, os trabalhos poderão ser vistos na Fundação Louis Vuitton, de Paris.
Cento e quinze obras de Rothko serão exibidas numa recém-inaugurada retrospectiva, a primeira a acontecer na França desde 1999, quando o Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris realizou uma panorâmica da produção do artista.
A pintura de campos de cor – que se caracteriza por grandes áreas de uma única cor – marca a trajetória de Mark Rothko, nascido Markus Yakovlevich Rothkowitz, em 1903, na Letônia, então Império Russo, de onde emigrou em 1913 para os EUA.
Do metrô a mitologia grega
Organizada em ordem cronológica, a retrospectiva, no entanto, também mostra os trabalhos figurativos do início de sua carreira, cenas do cotidiano nova-iorquino, a exemplo do vaivém de passageiros no metrô da cidade, nos anos 1930.
“Eram uma identificação com o povo sofrido, algo que vai desaparecendo quando ele passa por uma fase meio surrealista, com formas derivadas de elementos orgânicos, até chegar àquilo que virou a praticamente a marca dele, aqueles retângulos sem um limite definido”, explicou ao NeoFeed Geraldo Souza Dias, professor de pintura da Escola de Comunicação e Artes da USP.
“Essas pinturas dele acabam inclusive definindo um conceito, o soft edge painting, em que as formas têm bordas macias, não marcadas com uma régua. As pinceladas vão se sobrepondo, e a mancha de cor parece estar flutuando.”
Essa primeira transição de repertório, mencionada por Dias, é mostrada na sequência. Rothko pinta com toques surrealistas lançando mão de antigos mitos para representar a dimensão trágica da condição humana durante a Segunda Guerra.
Um dos exemplos mais notórios dessa fase é sua versão de “Tirésias” (1944), profeta cego de Tebas, na mitologia grega. Outra pintura do mesmo ano, “Slow Swirl at the Edge of the Sea”, com figuras sinuosas cercadas de arabescos e espirais, traz ainda um Rothko em flerte com o surrealismo.
É a partir da segunda metade dos anos 1940 que Rothko tem seu primeiro ponto de virada em direção ao abstracionismo, com pinturas batizadas por críticos e historiadores como multiformas, “massas cromáticas” em que o pintor inicia suas experimentações com cor e escala.
Gradualmente Rothko transita para a organização espacial que marcaria seus trabalhos a partir da década seguinte: “formas retangulares [que se] sobrepõem de acordo com um ritmo binário ou terciário, caracterizadas pelos tons de amarelo, vermelho, ocre, laranja, azul, branco”, segundo descrição da Fundação Louis Vuitton.
Com o passar dos anos, sem abandonar sua paleta de cores vivas, Rothko fez também trabalhos com tons mais escuros. Chegou a criar uma série, “Black and grey”, pensada originalmente para encapsular esculturas de Alberto Giacometti (1901-1966) na sede parisiense da UNESCO, uma encomenda de 1969 que ele, por fim, recusara, justificando problemas de saúde.
No ano anterior, o pintor tivera uma aneurisma. Esses trabalhos, assim como as criações de Giacometti, estarão em exibição na sala de pé-direito mais alto da Fundação.
A propósito dessas pinturas em preto e tons de cinza, historiadores alertam que seria uma conjetura apressada e simplista achar que se poderia associá-las à depressão de que Rothko sofria. Em 1969, o pintor se separou da segunda mulher, Mary Alice (Mell), após longo período de turbulência matrimonial.
No ano seguinte, ele cometeu suicídio, aos 66 anos. Tomou uma overdose de barbitúricos e cortou com uma navalha uma artéria de seu braço direito.
Batalha pelo espólio
Além de obras do acervo de grandes instituições, como a Tate, de Londres, da National Gallery of Art e da Phillips Collection, ambas de Washington, e de coleções privadas, a retrospectiva exibirá obras pertencentes à família de Rothko. O filho do pintor, Christopher Rotko, é curador da exposição, ao lado de Suzanne Pagé, diretora artística da Fundação Louis Vuitton.
Em 1970, ano de sua morte, as obras de Rothko já haviam alcançado preços exorbitantes – nada comparável, porém, à cifra pela qual o quadro “Orange, Red, Yellow” (1961) viria a ser arrematado em 2012, num leilão da Christie’s: quase US$ 87 milhões.
No entanto, em 1971, a irmã de Christopher, Kate, iniciou uma batalha legal em que processou os testamenteiros do espólio de Rothko, alegando que eles haviam conspirado junto à Marlborough Fine Art, galeria de seu pai, para vender aos galeristas obras do pintor por valores abaixo do mercado.
O processo se estendeu até 1979, Kate venceu, e os testamenteiros foram afastados sob o veredito de “descuido e desperdício à beira de grosseira negligência”. Alguns dos sócios da Marlborough foram acusados de fraude e pagaram uma indenização de US$ 9 milhões aos irmãos Rothko, e a galeria devolveu 658 pinturas que ainda estavam em sua posse.
Os meandros da fraude foram tema do livro “The Legacy of Mark Rothko – An exposé of the greatest art scandal of our century” (1979), de Lee Seldes, cuja adaptação para o cinema, com Russell Crowe no papel do pintor, será lançada no ano que vem.
No anúncio do filme, a inglesa Sam Taylor-Johnson, que assina a direção, declarou que o longa trará “a jornada de Kate Rothko para proteger as pinturas seminais dos homens corruptos que traíram seu pai e roubaram sua arte.”