Não existirá jamais alguém como Eugène-Adrien Roland Garros (1888-1918) — aquele mesmo que dá nome a um dos quatro torneios de tênis do Grand Slam, embora nunca tenha sido tenista. Pioneiro da aviação mundial, ele morreu a um dia de completar 30 anos de idade e a um mês do fim da Primeira Guerra Mundial. Em uma batalha aérea, seu avião foi abatido pelas tropas inimigas.

Apesar de seu pouco tempo de vida, Garros foi capaz de feitos que mudaram a história, como ajudar na transformação dos aviões em arma de guerra. Teve tempo ainda para escrever suas memórias, durante os três anos em que foi feito prisioneiro de um campo de concentração. Em 1915, ele se viu obrigado a fazer um pouso de emergência e foi capturado. Conseguiu escapar com outro piloto francês, os dois disfarçados de soldados alemães.

Intitulado Memórias, o relato completo do aviador sai agora no Brasil, pela L&PM, acompanhado de seu Diário de Guerra, sobre o dia a dia dos combates entre 1914 e 1915. As experiências aeronáuticas de Garros, de 1909 a 1914, é uma obra-prima da literatura de não-ficção. O francês foi protagonista de um dos momentos mais importantes para a civilização — o nascimento da aviação.

Em um estilo preciso, sua narrativa, muitas vezes poética, parece um romance de aventura, como assegura o escritor Philippe Forest, na apresentação da obra. As histórias são uma sequência interminável de conquistas, que o leitor acompanha com prazer. É um texto inspirador, construído por alguém com enorme talento para a escrita. Soma-se a isso o fato de resgatar uma época de descobertas, grandes invenções e avanços tecnológicos.

O celebrado autor francês Blaise Cendrars (1887-1961) classificava o livro de Garros como "o documento mais extraordinário, pitoresco e vivo que se pode ler sobre os primeiros dias da aviação na França e em todo o mundo". Não há qualquer exagero nessa afirmação.

Como Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor de O Pequeno Príncipe, que também morreu em combate aéreo, durante a Segunda Guerra Mundial, Garros “consegue transmitir ao leitor o fascínio pelas alturas, pela liberdade, o sabor da vida aventureira”.

Desde a adolescência, ele competiu em diversas modalidades esportivas, como ciclismo e automobilismo, até se apaixonar pelo sonho de voar. Sua vontade chegou a tal ponto que, em 1909, comprou do amigo Alberto Santos Dumont (1873-1932) um dos lendários monoplanos Demoiselle — o primeiro ultraleve da história, tido como a obra-prima do inventor brasileiro.

"A exuberância luxuriante do clima brasileiro"

Garros aprendeu a pilotar aeronaves ainda frágeis e em experimentação. Em um feito histórico, tornou-se, em 1913, o primeiro homem a cruzar o Mediterrâneo de avião, considerado o primeiro voo intercontinental da história. Ele saiu de Fréjus, na França, e, seis horas depois, aterrissou em Bizerta, na Tunísia.

A façanha fez dele, mesmo tão jovem, aos 25 anos, uma lenda na França, onde recebeu a medalha da Legião de Honra, a maior honraria dada pelo governo francês. Garros participava de uma equipe de aviadores que promovia eventos aeronáuticos, shows de exibição e espetáculos de acrobacias aéreas, que atraíam multidões, onde quer que fosse.

Memórias impressiona pela riqueza de detalhes. Ele lista todas as cidades por onde passou, inclusive no Brasil. Em São Paulo, disputou e venceu uma competição aérea entre a cidade e Santos.

Garros comprou do amigo Santos Dumont um dos lendários monoplanos Demoiselle, tido como a obra-prima do inventor brasileiro (Foto: Divulgação/L&PM)

Com 452 páginas, o livro custa R$ 89,90 (Foto: Divulgação/L&PM)

Capturado na Primeira Guerra Mundial, o aviador passou três anos sob poder dos inimigos (Foto: Divulgação/L&PM)

Garros levou seu avião Blériot a 5.610 metros do solo, um recorde no início do século 20 (Foto: Divulgação/L&PM)

A chegada do aviador na Tunísia, depois de cruzar o Mediterrâneo (Foto: Divulgação/L&PM)

Fez história também ao se tornar, no Rio de Janeiro, o primeiro piloto a cruzar a Baía da Guanabara. Suas fotos são as primeiras imagens aéreas da então capital do país — reproduzidas à profusão em cartões-postais.

Sobre a estadia brasileira, Garros relata: “Embarcados em Le Havre, fizemos breves escalas em Lisboa, São Vicente, Pernambuco, Bahia. A viagem terminou no cenário feérico da baía do Rio. Assim que o [avião] Thames cruzou o estreito canal, ladeado à esquerda pelo Pão de Açúcar, nos vimos cercados instantaneamente pela exuberância luxuriante do clima brasileiro”.

Em terras cariocas, conta, “fomos acomodados em um aposento do Hotel Avenida. Mas o deixamos quase que imediatamente e nos hospedamos no International. Este estabelecimento, situado nas encostas da montanha, a meio caminho do cume do Corcovado, domina a cidade e a baía. Infelizmente, o único meio de acesso era um pequeno bonde elétrico que subia a sinuosa trilha com terríveis rangidos”.

Garros não podia ser mais preciso na descrição: “Ele [o bonde] saía da cidade por um viaduto alto, estreito e com aparência decadente, que eu não conseguia atravessar nos primeiros dias sem sentir uma leve vertigem e ansiedade. A nossos pés, o Rio brilhava silencioso, diante do espelho escuro de sua baía, e sobre nossas cabeças, o céu ficava tão prodigiosamente repleto de estrelas que parecia uma abóbada de diamantes”.

Segundo o aviador, os primeiros dias no Rio passaram rapidamente, “sob o encanto exótico de tudo o que nos rodeava. Preenchemos nossa ociosidade com longos passeios de carro. No Rio, é possível alugar belos carros de turismo, com muitos de nossos modelos Renault franceses”.

Espelho de sua própria morte

Entre suas façanhas, em 1913, Garros levou seu avião Blériot a 5.610 metros do solo, estabelecendo um novo recorde mundial, o que significava uma enorme proeza naquele começo de século 20.

Sua ousadia e espírito inovador o levaram a desenvolver uma técnica para o combate aéreo: a fixação de armas diretamente na fuselagem da aeronave. A novidade, que permitia disparos mais precisos e eficazes, foi adaptada por outros países, transformando para sempre o modo como as guerras seriam travadas nos céus.

Um pouco como se estivesse envergonhado de ter ficado tanto tempo longe da guerra, depois dos três anos em que esteve no poder dos alemães, Garros recusou a proposta de ficar na retaguarda e exigiu voltar a voar, em sua antiga esquadrilha.

Morreu em 5 de outubro, quando sua aeronave se desmantelou no ar e caiu em Ardneas, na fronteira da França com a Bélgica.

Em certo sentido, lembra Phillipe Forest, Garros inventou a batalha aérea, em 1º de abril de 1915. O aviador descreve, nas anotações de seu diário, sobre o horror de um avião abatido em pleno voo, graças à sua invenção: "Pegamos o carro para ver os destroços, um monte de fragmentos carbonizados e dois cadáveres nus e ensanguentados. Os reservatórios estavam perfurados, o passageiro tinha uma bala na cabeça. Não pudemos identificar os outros devido ao horrível estado dos cadáveres".

Para Forest, fica difícil escapar ao sentimento de que é a própria morte que Garros espelha, “enquanto o sonho aeronáutico em que toda a humanidade havia depositado suas esperanças, e ao qual ele havia servido tão bem, estava prestes a se tornar, em torno dele, com ele, graças a ele, apesar dele, um pesadelo”.