Se contar em uma mesa de bar a história do marechal Casimiro Montenegro Filho (1904-2000), nascido e criado no Ceará e que migrou para o Rio de Janeiro, talvez os ouvintes não acreditem em boa parte das suas peripécias. As mesmas que levaram às criações do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e do Correio Aéreo Nacional, além da estruturação da Embraer.

Chamado de louco por muitos, o visionário e impetuoso militar foi o “Indiana Jones brasileiro que deu certo”, segundo seu biógrafo Fernando Morais, que já contou a vida do megaempresário Assis Chateaubriand e prepara o segundo volume da trajetória do Presidente Lula.

A nova edição de seu livro "Montenegro: As aventuras do marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil", lançado em 2006 pela Planeta, retorna às livrarias neste começo de novembro pela Companhia das Letras. E isso acontece em um momento oportuno, quando o País mais precisa de heróis como ele: desbravadores e democratas, com um olhar para o futuro e capazes de realizar sonhos que alguns consideram utopias.

A obra sai, também, quando a Embraer, seu projeto mais ambicioso, é uma das três marcas mais fortes e importantes do mundo na construção de aeronaves de transporte de passageiros, ao lado da Boing e da Airbus. Em cada milímetro de suas aeronaves tem o DNA do marechal.

Entre momentos de empreendedorismo, teimosia, perseverança e situações pessoais de grande emoção, o autor recupera a história do aviador militar que contrariou expectativas e defendeu até o fim seu ideal de transformar o Brasil em potência aeronáutica mundial, a partir da criação do ITA, uma das mais conceituadas universidades públicas do País que ele inaugurou em junho de 1950.

Moraes acaba de fechar a venda dos direitos autorais da obra para virar minissérie em uma plataforma de streaming. “É muito bom que produzam algo assim sobre um personagem condenado a ficar esquecido para sempre nas gavetas da família”, disse ele ao NeoFeed.

Discípulo de Alberto Santos Dummont, inventor do avião, Montenegro nasceu no Ceará, de onde saiu adulto. É descrito por Morais como um menino tímido, magro e de olhos azuis, que não estava entre os melhores alunos da classe, mas tinha sonhos ambiciosos: queria ser piloto. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro e se inscreveu na Escola Militar de Realengo.

Fernando Morais acaba de vender os direitos de Montenegro para uma minissérie no streaming: herói nacional
Fernando Morais acaba de vender os direitos de Montenegro para uma minissérie no streaming: herói nacional

No jargão popular, caiu de paraquedas em uma corrente militar golpista conhecida como tenentismo, envolveu-se diretamente em momentos cruciais da história política do Brasil e seria de grande contribuição para a consolidação da aviação brasileira.

Em junho de 1931, fez o primeiro voo de um projeto pessoal: a criação de um serviço postal aéreo – o Correio Aéreo Nacional – que pudesse alcançar os rincões do País, promover o desenvolvimento tecnológico e a unidade nacional.

O passo seguinte foi a fundação do ITA, que só ocorreria em 1950, pensado para ser uma excelência em conhecimento para a indústria brasileira, inclusive na criação de lideranças, como conta o biógrafo nesta entrevista exclusiva.

Confira os bastidores da biografia e detalhes da trajetória de dedicação e pioneirismo de Casemiro Montenegro Filho, em que não faltam obstáculos de ordem governamental e militar e aventuras de toda sorte, diz Morais.

Casemiro Montenegro Filho é um brasileiro pouco conhecido, mas que fez muito pela aviação comercial brasileira, certo?
O melhor exemplo foi ele ter fundado o ITA, que lutou para que se tornasse um centro de ensino aberto à sociedade brasileira, voltado à tecnologia de ponta e que não existisse apenas como um departamento da Força Aérea Brasileira (FAB). Na época em que o Brasil importava penico da Inglaterra, ele dizia que seríamos uma potência mercantil mundial em aviação. Hoje, as três maiores empresas do mundo são Boeing, Airbus e a terceira é a nossa Embraer, que ele planejou.

Você sabia de Montenegro, mas foi uma garotinha que abordou você sobre o tema no elevador?
Eu morava na França quando dois amigos brasileiros, ambos praticamente no mesmo dia, mandaram e-mail para me dizer que havia morrido um personagem fascinante e que eu deveria biografá-lo. Eu nunca tinha ouvido falar nele, um milico, um marechal do ar. Expliquei que não podia me aprofundar no assunto porque tinha prazo para entregar o livro Corações Sujos, sobre a Shindo Renmei, a seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil após o fim da Segunda Guerra. Aquilo saiu do meu radar, embora tivesse interessado.

E onde entra a menina?
Quando a gente voltou para o Brasil, dois anos depois, eu estava no elevador e uma garotinha de uns dez anos virou-se e disse: “Você é Fernando Morais, né?’ Respondi: “Sim, sou eu. Como sabe?”. E ela: “Eu ouvi minha avó dizer que você vai fazer a biografia do meu vô!” E eu: “Ah, que interessante! Como é o nome dele?” Ela respondeu Montenegro. “Você não é vizinha do andar tal? Olha, a gente é meio contraparente”. Essa garota que me prensou no elevador é meia irmã da filha da minha sobrinha. Disse a ela: “Vou falar com Clarice, sua prima, para a gente conversar". “Não, minha vó já fez uma coleção importante de documentos e vou levar na sua casa”.

"Comecei a fuçar, fuçar, fuçar... e fui me apaixonando pelo personagem. E não é por acaso que o Marechal Montenegro se tornou uma espécie de Indiana Jones brasileiro que deu certo"

O livro começou a nascer assim?
Foi engraçado ter uma conversa dessa, de adulto, com uma criança. No mesmo dia, ela apareceu lá em casa, que eram dois andares acima ou abaixo do dela, não me lembro – e me entregou uma caixa de papelão que a avó mandou. Comecei a fuçar, fuçar, fuçar... e fui me apaixonando pelo personagem. E não é por acaso que o Marechal Montenegro se tornou uma espécie de Indiana Jones brasileiro que deu certo.

O que fez você decidir que escreveria o livro?
Eu poderia fazer uma seleção de episódios que ele viveu, coisas que criou, mas se me pedir um exemplo apenas foi a fundação do ITA. Esse camarada era um grande visionário. Na hora que ele vai a Boston, quando ainda era major aviador, provavelmente, procura a direção do MIT (Massachusetts Institute of Technology), faz amizade com os responsáveis pelo comando e diz que quer reproduzir um MIT no Brasil. Eles provavelmente nem tinham ouvido falar do Brasil, se ficava ou não na Ásia, na África ou no Oriente Médio. Montenegro tirou um mapa da pasta e mostrou: “É neste país aqui, quero criar um MIT para gerar tecnologia, pensamento tecnológico. Produziremos grandes e melhores especialistas em tecnologia de aeronáutica e quanto mais ela avançar mais avançaremos”.

Qual foi a reação dos diretores MIT ao ouvirem isso?
O pessoal se apaixonou por ele e pelo Brasil. Montenegro deu volta e mais volta, foi a vários gabinetes de políticos e de militares no Rio de Janeiro, procurou amigos de infância em cargos de comando na Aeronáutica, bateu na porta de ministros e chegou em Getúlio Vargas, de quem conseguiu arrancar a autorização para fazer no País um modelo idêntico ao MIT.

Vargas autorizou com algumas condições, correto?
Em primeiro lugar, que fosse um centro de ensino público, não uma coisa apenas para a Força Aérea, mas aberto à sociedade, que pudesse contribuir para o país desenvolver tecnologia, que acompanhasse o que era conhecimento de ponta no planeta.

"O que chama minha atenção é que, naquela época, ele via o Brasil como uma potência aeronáutica mundial. As pessoas achavam que ele estava maluco"

O marechal tinha uma visão de inserir o Brasil na indústria da aviação mundial?
O melhor e mais eloquente exemplo disso é a Embraer, que, sem tirar nenhum mérito do meu amigo Ozires Silva (presidente e cofundador da Embraer), é uma concepção do Marechal Montenegro, isso está comprovado. O que chama minha atenção é que, naquela época, ele via o Brasil como uma potência aeronáutica mundial. As pessoas achavam que ele estava maluco. A Embraer nasceu da cabeça e da maluquice de Montenegro.

Ele também criou o Correio Aéreo Nacional. Com que propósito?
De ligar o País. Só se conhecia o litoral, o resto era tudo mato. E precisou superar muitas dificuldades. Montenegro vem do Ceará para o Rio de Janeiro para fazer curso de oficial na hoje Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Em seguida, consegue misturar em um único personagem o inovador e o aventureiro, porque a primeira aparição pública dele é na revolução de 1930, quando pega um avião sem seu superior ver, alia-se a Getúlio Vargas e vai jogar bombas em Juiz de Fora e resgatar uns amigos.

Até chegar ao ITA?
O instituto foi fruto do rigor da obstinação dele para implantar algo com a excelência e o padrão do MIT. Se você pega hoje as maiores empresas brasileiras ou estrangeiras instaladas no Brasil vai ver a origem, a formação dos CEOs, dos dirigentes, 90% vieram do ITA – engenheiros, físicos etc. De lá sai o pessoal que faz avião e está disputando com a Boeing e Airbus o mercado mundial.

Como era ele pessoalmente?
Era um sujeito muito bonito e namorador. E não se casou jovem, como a maioria dos colegas. Sua turma foi sendo promovida, fez família, e ele, solteirão, usava seu salário como engenheiro da Aeronáutica para importar automóveis conversíveis e desfilar por Copacabana com mulheres lindíssimas à bordo. Em uma dessas reviravoltas familiares, já brigadeiro, ele se casa aos 51 anos, com uma sobrinha 30 anos mais jovem que ele. No livro mostro duas imagens: ele em uma foto com uma menininha no colo e na outra os dois se casando.

No final, a vida não foi generosa com ele, não é?
Não vou dar spoiler para não tirar a curiosidade das pessoas, mas há uma reviravolta na vida dele, quando já é marechal do ar. Eu diria que é um dos livros que mais gostei de escrever e um dos meus preferidos.

Você fala no personagem humanizado que se destaca na biografia. A sua proximidade com a família ajudou nisso?
Ajudou sim. Escrever sobre ele me identificava porque este é um país que não tem o menor respeito pelos seus heróis de carne e osso. Pode verificar isso em diversas áreas. E eu descobri que a gente tem nele um herói. Às vezes, as pessoas se espantam quando digo isso e que Montenegro foi um dos personagens que mais me seduziram entre os que biografei. Dizem assim: “Você é um sujeito com trajetória de esquerda e fala isso de um milico?”. Pois é, mas afirmo que o Brasil seria bem melhor se tivéssemos dez Marechal Montenegro.

"Escrever sobre ele me identificava porque este é um país que não tem o menor respeito pelos seus heróis de carne e osso"

A escolha de São José dos Campos para instalar o ITA foi estratégico para Montenegro?
Eu não tenho dúvidas disso. Por razões óbvias e por certa história mítica que teria ocorrido com ele. Primeiro, porque é uma cidade que está a meio caminho das duas metrópoles brasileiras. Havia um importante parque industrial na capital paulista e o Rio era o centro político do País, onde Montenegro teria de percorrer gabinetes para conseguir autorizações. Segundo, na parte mítica, ele teria descoberto que Santos Dumont passou por lá, abriu os braços e dito: “Daqui vão sair os aviões dos céus brasileiros”.

Como você mostra no livro, nada disso foi fácil...
Nem um pouco. Os presidentes da República, políticos e gente da Aeronáutica que ele teve de enfrentar se tornaram um verdadeiro calvário. Então, a escolha de São José dos Campos me parece racional, embora ele fosse um cearense raiz. Enfim, ele gostou do lugar e criou ali a maior fábrica de cérebros do Brasil que é o ITA.

O que tem dele no projeto da Embraer, oficialmente fundada em 19 de agosto de 1969 por Ozires Silva?
Tudo. A semente é dele. Ele já dizia: “Aqui vamos construir aviões”. Para isso, enfrentou uma burocracia tremenda dentro da Aeronáutica, comandada por desafetos seus. O diretor e fundador do MIT ficou instalado no ITA para ver aquele cearense maluco fazer as coisas que anunciava.

Por que ele ficou de fora da fundação da Embraer?
Porque estava muito velho. Depois de certa idade, perdeu a visão. Mas não ficou inativo, com a ajuda da esposa, dona Antonieta. Ele tinha preocupação com o ITA, de onde sairiam as pessoas que fundariam a Embraer. E preparou todo o pessoal. Ao mesmo tempo, tinha uma queda de braço com a Aeronáutica, para quem a Embraer deveria ser uma oficina de luxo. Ele esperneou, mas não conseguiu mudar o conceito e transformá-la em uma empresa em sua época. Isso só aconteceu depois.

A Embraer não teria sido o que é sem o ITA?
Absolutamente não. Basta fazer um levantamento do número de pessoas no seu comando que vieram de lá. Sem o ITA não haveria a excelência da Embraer.

Montenegro: As aventuras do marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil
Capa do livro

Serviço:
Montenegro: As aventuras do marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil
Fernando Morais
360 paginas
R$ 109,90
Companhia das Letras