Em seu Manifesto Surrealista, de 1924, o escritor e poeta francês André Breton (1896-1966) criticava o realismo e o racionalismo então predominantes na produção cultural. Para ele, a “mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve para entorpecer cérebros”.

A experiência surreal, defendia ele, partia do não lógico e do onírico, uma ideia literária que logo desaguou numa das vanguardas artísticas europeias do século 20, cujos expoentes foram o belga René Magritte, o espanhol Salvador Dalí e o alemão Max Ernst.

Cem anos depois da publicação do Manifesto, exposições e livros lançam luz não apenas sobre as origens do movimento, mas também sobre sua influência até hoje, na cultura contemporânea. Inclusive, a brasileira.

Entre os dias 3 e 7 de abril, a Galeria MaPA leva à SP-Arte um estande inteiramente dedicado aos 100 anos do surrealismo, com um elenco de artistas brasileiros ou radicados no país, entre eles Bernardo Cid, Niobe Xandó, Walter Levy e Sergio Lima —que, inclusive, fez parte do círculo de amigos de Breton.

Para o galerista Marcelo Pallotta, pode-se dizer que havia um acento local entre os surrealistas brasileiros.

“Existe uma carga política, brasileira, forte nas obras de Bernardo Cid, por exemplo, na virada dos anos 1950 para os 1960, com o início da ditadura no país”, ressalta ele, em entrevista ao NeoFeed. “Já, na obra do Sergio Lima, havia uma recorrência da figura feminina, mais característica da produção latino-americana.”

No ano passado, a exposição Murilo Mendes, poeta crítico: o infinito íntimo, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, incluiu obras de Ismael Nery, “o grande artista brasileiro surrealista”, segundo Cauê Alves, curador-chefe da instituição e professor do Departamento de Arte da PUC-SP.

Em conversa com o NeoFeed, Alves, diz que o artista, assim como o poeta Murilo Mendes, foi um entusiasta do movimento no Brasil. E cita outros exemplos:

“Cícero Dias também foi uma figura importante, teve contato com os surrealistas em Paris. Outro muito pouco lembrado foi Jorge de Lima, que trabalhou com fotomontagem, teve um diálogo forte com Guignard [Alberto da Veiga] e o grupo de Murilo Mendes. Tarsila, em obras como A Lua e Floresta, flerta com o surrealismo. Assim como Oswald de Andrade também cita o movimento e a psicanálise no Manifesto Antropófago”.

Freud e os surrealistas

O surrealismo pode ser dividido em duas vertentes, uma marcada por um retorno à espontaneidade, à infância, ao “não raciocinado”, comum na produção de Joan Miró – ainda que o catalão não associasse sua pintura a “ismos”, explica o professor da PUC.

A outra linha é mais figurativa, presente em Magritte e Dalí. Nela, ressalta ele, a noção de representação é fundamental – o imaginário, a partir de uma ligação com o mundo visível.

De modo geral, o movimento surrealista foi bastante influenciado pelas teorias de Sigmund Freud (1856-1939). Breton, que fora aluno de psiquiatria, chegou a visitar o “pai da psicanálise” em 1921, em Viena. Como relata a psicanalista Tania Rivera, no livro Arte e Psicanálise, Freud não demonstrou qualquer interesse pelo movimento.

O surrealismo, porém, foi importante para disseminação da psicanálise na França, “onde as resistências do meio médico e uma germanofobia” levantavam “barreiras à entrada do freudismo”. A psicanálise e a arte moderna não são contemporâneas por acaso, defende Tânia. “Ambas se inscrevem na cultura num contexto de crise do sujeito e de crise da representação, explica ela, ao NeoFeed.

Por sua vez, o surrealismo viria a influenciar “de maneira muito importante” a psicanálise por meio de Jacques Lacan, que era “desse grupo de jovens letrados que estavam em torno de Breton na década de 1920”, conta a psicanalista.

Ele chegou a ser médico pessoal de Pablo Picasso (1881-1973), além de ter procurado Dalí, enquanto escrevia sua tese de doutorado, defendida em 1932.

As mulheres no movimento

As origens e os ecos do surrealismo têm um caráter elástico no tempo. Em seu livro New Surrealism: The Uncanny in Contemporary Painting, o escritor e artista plástico americano Robert Zeller defende: os surrealistas voltaram no tempo e reivindicaram para o movimento artistas como o holandês Hieronymus Bosch, do século 16 --um surrealista antes do surrealismo.

Do mesmo jeito, Zeller identifica, na contemporaneidade, cerca de 30 "novos surrealistas", entre eles a pintora polonesa Ewa Juszkiewicz e suas representações de mulheres cobertas de plantas, e o taiwanês Lin Shih-Yung e seus humanos com cabeças de bananas.

No Brasil, Alves vê heranças do surrealismo na produção das paulistas Leda Catunda e Erika Verzutti.

"O Duplo Segredo", de René Magritte, 1927

"Desencontro", de Bernardo Cid, 1967

"Construção Mole com Feijões Cozidos", de Salvador Dalí, 1936

Ismael Nery, 1934

Sergio Lima, 1956

"Chá verde", de Lenora Carrington, 1942

Lançado em janeiro, o livro Why surrealism matters ("Por que o surrealismo importa", em tradução livre), do escritor americano Mark Polizzotti, também destaca o caráter político do movimento, em especial a objeção dos surrealistas ao colonialismo e ao racismo franceses, temas com eco nas discussões atuais sobre igualdade racial e justiça social.

Do ponto de vista estético, Polizzotti aponta ainda que o surrealismo reverberou em outras formas de arte, como o cinema de Luis Buñuel, o Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco  e as comédias da trupe britânica Monty Python.

Para o autor, tendências surrealistas também aparecem no mundo cinematográfico de David Lynch, cujos filmes, como Eraserhead e Mulholland Drive mergulham em desejos psicossexuais obscuros, sob a superfície de um mundo aparentemente tranquilo.

As comemorações

Na Europa, berço do surrealismo, o movimento será celebrado em ocasiões diversas. Em Bruxelas, na Bélgica, o Centro de Belas Artes Bozar recebe até junho a exposição Histoire de ne pas rire. Surrealism in Belgium, com maior foco em artistas belgas, como Paul Devaux, Jane Graverol e Magritte.

Também na capital belga, a mostra IMAGINE!, uma parceria do Museu de Belas Artes com o Centro Pompidou, de Paris,  investiga as interseções entre os movimentos simbolista e surrealista no país e também se debruça sobre a produção de artistas

De Bruxelas, a exposição segue para Paris, Hamburgo, Madri e Filadélfia.

Em setembro, o Pompidou inaugura em Paris a mostra Surrealism. The Centenary Exhibition, evocando escritores que inspiraram o movimento, como Lewis Carroll e Marquês de Sade, além de apresentar um conjunto de obras produzidas entre 1924 e 1969.

A exposição tem também o mérito de mostrar a produção de mulheres surrealistas, como a artista britânica Leonora Carrington e a fotógrafa francesa Dora Maar. Traz ainda artistas de fora da Europa, como o pintor japonês Tatsuo Ikeda e o mexicano Rufino Tamayo.