Você chega ao supermercado. Passa pela padaria e escolhe um pão quentinho, feito com trigo colhido no edifício ali ao lado, uma grande lavoura vertical, com temperatura, luzes e umidade controladas para obter máxima produtividade.

Segue, então, para o açougue e pede um filé de sua raça bovina preferida. O funcionário seleciona as características desejadas e dá o comando no seu tablet. Em poucos minutos, uma impressora 3D produz o seu corte favorito, pronto para assar.

A última parada é na prateleira de óleos de cozinha, onde busca uma opção produzida a partir de micróbios em grandes tanques de fermentação – não há grãos ou outras plantas oleaginosas envolvidas no processo.

Parece futuro, e é. Mas está bem próximo de ser realidade. “Há muita coisa no horizonte com potencial de provocar rupturas nos sistemas de produção agrícola e alimentar”, afirma o pesquisador Maurício Lopes, ex-presidente da Embrapa e um dos mais dedicados estudiosos das tendências das cadeias de produção de alimentos, do campo ao prato.

“Mudanças como essa virão num prazo cada vez mais curto”, prevê Lopes. O tempo encurta à medida em que a agropecuária tradicional é pressionada a ampliar sua produção para atender a uma demanda urgente por mais comida e que o dinheiro abastece o caixa de laboratórios e startups dedicados a transformar a indústria de alimentos.

Aparentemente, assiste-se a duas corridas paralelas: uma para alimentar uma população global crescente, que deve chegar a 10 bilhões de pessoas em 2050, segundo estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação); outra para responder às mudanças de hábitos de milhões de consumidores, cada vez mais preocupados com a origem e a composição dos alimentos que ingerem.

Na prática, porém, elas são convergentes, complementares e se apoiam na combinação de tecnologias, digitais, biológicas e agrárias para realizar o cenário previsto pelos futurólogos da alimentação.

Como? “Precisamos estudar mais modelagens, olhar para estudos sérios e entender qual o futuro das grandes commodities”, afirma Lopes, da Embrapa. E dá um exemplo: O trigo ainda não é cultivado em fazendas verticais, mas com base em tecnologias já disponíveis ou em fase de desenvolvimento, é possível.

Um grupo de cientistas de vários importantes centros de pesquisa dos Estados Unidos publicou recentemente na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), uma das mais respeitadas publicações científicas dos Estados Unidos, os resultados de uma simulação sobre a produção em uma hipotética lavoura do grão em ambiente controlado num edifício de dez andares somando um hectare de área.

Segundo o estudo, a colheita resultaria em uma produtividade 600 vezes (isso mesmo, 600!) maior que a média da obtida em campos abertos. Lopes acredita que veremos isso acontecer em um prazo não muito distante, assim que a ciência superar desafios como o desenvolvimento de variedades de trigo adaptadas ao ambiente interno (menos crescimento vertical é uma necessidade, por exemplo).

Mas outras condições necessárias estarão disponíveis rapidamente, como o cultivo sem solo, em que água e nutrientes para as plantas serão capturadas a partir de vapor dispersado no ambiente, e o sequestro de carbono pelas próprias estruturas físicas dos edifícios, já em teste por uma startup suíça.

Conectam-se, assim, tendências que dominam as teses de investimentos de fundos interessados em fomentar a produção sustentável de alimentos – e, é claro, lucrar com isso: agricultura vertical indoor, descarbonização, despoluição, uso racional da água...

“A urbanização intensa propõe nova interação sociedade com o agro e a indústria de alimentos. Além disso, a pandemia e a guerra na Ucrânia mostraram a vulnerabilidade das grandes cadeias de valor”, diz Lopes. “Primeiros a sentir isso são fazendas verticais e o cultivo de proteínas in vitro. Não é mais conto da carochinha.

A agropecuária será cada vez mais feita em proximidade com as moradias, junto às cidades. Basta olhar com lupa para quem são os investidores e enxergar que ali estão grupos como Google, Amazon e os gigantes dos alimentos”.

Produzir mais e melhor

As inovações tecnológicas despontam nos laboratórios de universidades e startups e ganham corpo quando os grandes nomes dos negócios as nutrem com seus recursos e capacidade de alavancagem. É o que está acontecendo claramente no universo das proteínas alternativas, outra tendência marcante e já em curso para o futuro da alimentação.

Grandes players da pecuária tradicional têm investido fortemente na busca de eficiência e sustentabilidade em seus modelos de produção, acelerando a intensificação das áreas de pastagem, introduzindo nutrientes que ajudam na redução de emissão de gases pelos rebanhos e adotando sistemas como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) para ampliar a descarbonização no setor.

Ao mesmo tempo, empresas líderes do setor já perfilam entre os principais investidores em iniciativas para produção de proteínas alternativas. Estaria alimentando seu próprio fim? De forma alguma. “A aposta da JBS em proteína cultivada não é um investimento em substituição. A empresa entende que os modos tradicionais de produção proteínas também são essenciais para o futuro”, afirma Eduardo Noronha, diretor global de recursos humanos e inovação da JBS.

O grupo, maior do mundo no segmento de proteínas animais, anunciou recentemente o investimento de US$ 100 milhões, nos próximos anos, na produção de alternativas para seus principais produtos atuais.

Um dos principais destinos desses recursos será a instalação, em Florianópolis (SC) do JBS Biotech Innovation Center, centro de excelência na área de biotecnologia de alimentos, de forma avançada, moderna, criativa e sustentável.

Inicialmente o foco do centro será o desenvolvimento de tecnologia própria para a produção de proteínas cultivadas, visando tornar mais eficiente o processo de produção em larga escala, a custos competitivos no mercado internacional.

No complexo serão construídos laboratórios especializados, parte de um novo centro de PD&I de 10 mil metros quadrados de área construída, com possibilidade de expansão para futuros projetos da JBS.

“A forma como a JBS tem investido no assunto mostra a seriedade com que ela aborda o mercado de proteína cultivada. Estudamos o assunto profundamente, há mais de um ano, incluindo tendências de mercado, e optamos por investimentos em uma empresa madura e num centro de pesquisa que vai ampliar as possibilidades de atuação”, afirma Noronha.

Impressora de bifes

“Estamos na era do mercado do ‘e’, não do ‘ou’”, resume Raquel Casseli, diretora de Engajamento Corporativo no Brasil do The Good Food Institute (GFI), instituição que se dedica a monitorar o mercado e o apetite de investidores do emergente segmento de alternativas aos produtos de origem animal – que inclui empresas de proteína vegetal, carne cultivada e de fermentação.

“O setor de alimentos funcionou da melhor maneira que pode até hoje, sempre olhando para altos índices de produtividade. Hoje a gente começa a ter o olhar de oportunidade, para mudanças urgentes que a gente precisa fazer em função de questões que estão batendo à nossa porta, como as mudanças climáticas, bem-estar animal e a necessidade de alimentar uma população que não para de crescer. As proteínas alternativas são uma das soluções”.

Segundo dados o GFI, o apetite por essas alternativas nunca foi tão grande. No ano passado, foram investidos, em nível global, US$ 5 bilhões em empresas do setor, número é 60% superior ao do ano anterior e cinco vezes mais que em 2019.

Entre as chamadas carnes de laboratório, cultivadas a partir de células animais, o crescimento foi ainda mais impressionante: empresas de carne e frutos do mar cultivados garantiram US$ 1,4 bilhão em investimentos em 2021 - o maior volume levantado em qualquer ano na história do setor e mais de três vezes os US$ 400 milhões arrecadados em 2020.

A quantia se explica pela necessidade de capital intensivo para levar as proteínas cultivadas dos laboratórios aos mercados. As técnicas de multiplicação celular já são dominadas em vários países, mas os desafios das indústrias para dar escala a esse processo e conquistar os consumidores ainda são grandes.

“Para se colocar como fazenda do futuro, é preciso ainda resolver várias questões que permitam dar escala a esse modelo de produção”, afirma Tatiana Nery, engenheira de Alimentos do Senai Cimatec em Salvador (BA).

“Os custos de produção são muito altos. Os nutrientes usados nos meios de cultivo são muitos caros, assim como os biorreatores utilizados na multiplicação das células. Precisamos trazer tudo isso para um custo mais acessível, de forma que esses produtos não sejam exclusivos para públicos de maior poder aquisitivo”, diz.

Com pós-doutorado em Engenharia Química, ela participou da equipe que acaba de conquistar um feito: obter, através de uma bioimpressora 3D, um corte de carne produzido a partir de células troncos retiradas da medula ou da pele de bovinos.

Combinadas a biomateriais comestíveis, que formam a parte sólida da proteína, elas ganham estrutura e podem assumir aparência e textura de um bife com gordura, por exemplo. “Estamos trabalhando na inovação para internalizar esse conhecimento, qualificar profissionais e trazer esses insumos para a matriz brasileira”, afirma Tatiana.

Um exemplo da desejada substituição de insumos é o uso, pelos pesquisadores do Cimatec, de quitosina, substância extraída da casca do camarão, como componente na estrutura do bife de laboratório. “Na estrutura de grãos que produzimos também há muitos materiais promissores”, afirma a cientista.

Futuro ao ponto

Tatiana acredita que o produto pode ter uma versão comercial em cerca de cinco anos, dependendo também das questões regulatórias em torno dessa nova categoria de alimentos – atualmente, a venda de carne cultivada a partir de células animais só é permitida em Singapura – outro dos desafios do setor.

Enquanto isso, a equipe multidisciplinar envolvida no projeto, que inclui de médicos a engenheiros de materiais e mecânicos, mantém as pesquisas para aperfeiçoar sabor, textura e aparência dos seus protótipos.

“Muitas pessoas querem migrar para esse tipo de produto, seja em função de questões ambientais, de bem-estar animal ou qualquer outra, mas querem sentir o sabor bem parecido ao do produto convencional”, diz ela.

Nesse sentido, o plant based é uma tendência mais consolidada. Mas o futuro permite muitas novas possibilidades. À base de plantas ou do cultivo de células animais, dentro de alguns anos esses novos alimentos podem ser desenhados sob medida para cada consumidor, funcionando como veículos para nutrientes e medicamentos, o que é mais complexo de se fazer nos alimentos convencionais.

“O Exército americano já está até mesmo testando biosensores, conectando o corpo dos soldados a uma base de dados, que indicará, individualmente, a perda de água e nutrientes em ação”, conta Tatiana, do Senai Cimatec. “E utiliza esses dados para preparar rações feitas para repor essas perdas. Isso poderá, um dia, ser feito com qualquer um de nós através de alimentos alternativos.”