Nada aterroriza mais a indústria alimentícia do que a presença de micróbios nocivos na linha de produção. Todos os anos, no mundo todo, 600 milhões de pessoas adoecem por causa de comidas e bebidas infectadas. Cerca de 420 mil morrem – o que equivale a 7,5% do total de óbitos globais.
Além de uma ameaça à saúde pública, a contaminação pode custar muito caro às empresas –tanto do ponto de vista reputacional quanto financeiro. Só nos Estados Unidos são realizados 800 recalls de alimentos, todos os anos. Lá, uma única ação de recolhimento de produtos estragados dos centros de distribuição e das prateleiras dos supermercados pode levar a perdas de US$ 10 milhões.
Em decorrência das mudanças climáticas, do aumento da resistência dos microrganismos aos medicamentos e da demanda crescente por produtos ultraprocessados, a expectativa é a de que o contágio de alimentos se torne mais e mais comum. Na maioria dos casos, as contaminações são causadas por bactérias, como Escherichia coli, Salmonella, Staphylococcus aureus e Listeria.
A melhor arma para enfrentar o problema é a detecção precoce dos patógenos. Há um problema, porém. Os métodos tradicionais de análise são feitos fora dos pontos de coleta das amostras e demoram, em média, cinco dias para fornecer os resultados. Uma startup francesa, no entanto, promete mudar esse cenário.
Fundada em 2023, em Paris, a Spore.Bio desenvolveu o primeiro dispositivo capaz de indicar a presença de agentes nocivos, ainda no chão de fábrica. Baseado em inteligência artificial (IA), o sistema usa análises ópticas e aprendizado de máquina para identificar, quase em tempo real, não só o tipo de micróbio, mas também suas quantidades. Com isso, é possível agir de prontidão e evitar que o patógeno prolifere e/ou chegue ao consumidor.
Com menos de um ano de história, a Spore.Bio acaba de arrecadar € 8 milhões. A rodada pré-seed foi liderada pela LocalGlobe. Lançada em 1999, em Londres, a empresa de venture capital foca em investimentos iniciais, sobretudo em startups de impacto socioambiental.
Participaram ainda do financiamento a Emerging Tech Ventures, a No Label Ventures, Clarins Family Office e Better Angle. Entre os investidores individuais estão Mehdi Ghissassi, head de produtos do Google DeepMind, e Roxane Varza, diretora do Station F, o maior campus de startups do mundo, sediado na capital francesa.
O protótipo da Spore.Bio acaba de ser apresentado ao mercado e a fila de espera pelo dispositivo já está em seis meses. A empresa de deeptech já fechou inclusive contrato com algumas fabricantes de alimentos. A tecnologia pode ser útil também nas indústrias farmacêutica e cosmética.
“A inovação da Spore.Bio não é apenas um avanço tecnológico; é um avanço em direção a uma sociedade mais segura e saudável e um caso claro de como a IA pode resolver problemas industriais reais”, diz Julia Hawkins, sócia da LocalGlobe. “Garantir que os produtos dessas indústrias estejam livres de bactérias nocivas é uma preocupação de todo nós, como consumidores.”
A startup foi criada por três jovens engenheiros. O CEO Amina Raji é químico e já trabalhou para grandes marcas de alimentos, como a Nestlé. O CTO Maxime Mistretta tem doutorado em microbiologia e o COO Mohamed Tazi iniciou sua carreira no departamento de auditoria da Deloitte e mais recentemente cofundou a Gymlib, startup de bem-estar corporativo, vendida para a gigante alemã de fitness Egym, no ano passado.
Chocolates contaminados e terror a bordo
A Spore.Bio entra na disputa por um mercado previsto em US$ 9 bilhões, em 2030. A taxa de crescimento anual composta de 7,9% até lá, informa a consultoria Global Market Insights. Um dos principais impulsionadores do setor de testes de patógenos alimentares é a preocupação crescente com a segurança das comidas e bebidas e recrudescimento das legislações sobre o tema.
Na Páscoa do ano passado, por exemplo, o governo da Bélgica determinou o fechamento de uma fábrica da Ferrero, na cidade de Arlon, responsável pela fabricação do chocolate Kinder Ovo. Um surto de Salmonella levou uma centena de pessoas aos hospitais.
Antes da suspensão da fabricação dos ovos, a Ferrero fez o recall dos produtos em diversos países, como Espanha, Portugal, Inglaterra, Irlanda, Estados Unidos e Austrália.
A infecção massiva de passageiros da Japan Airlines, em 1975, mudou as regras de segurança alimentar na aviação. Em 3 de fevereiro daquele ano, no voo entre Anchorage, no Alasca, e Copenhagen, na Dinamarca, uma hora depois de servido omelete de presunto como café da manhã, 197 pessoas começaram a passar mal. Náusea, enjoo, cólicas abdominais, diarreia e vômito... um terror.
Em terra, 144 viajantes tiveram de ser hospitalizados. Análises laboratoriais indicaram a contaminação por Staphylococcus aureus. Mais tarde as investigações mostraram que um dos três cozinheiros responsáveis pelo preparo das omeletes estava com o dedo cortado e o machucado está infeccionado pela bactéria.
Além disso, o armazenamento inadequado da comida facilitou a propagação do microrganismo. A partir daí, a Organização da Aviação Civil Internacional e a Associação Internacional de Transporte Aéreo, com o apoio da Organização Mundial de Saúde, passaram a seguir diretrizes rígidas para garantir a segurança alimentar a bordo.