Com a urgência da crise climática, na busca por reduzir a dependência do planeta em relação aos combustíveis fósseis, os oceanos acenam com a promessa de um futuro mais limpo. Como o sol e os ventos, a diferença de temperatura entre as águas quentes da superfície e as frias das profundezas pode também ser usada como fonte de energia renovável. O nome da estratégia: conversão de energia térmica dos oceanos (OTEC, na sigla em inglês).
A ideia de usar os oceanos como uma espécie de bateria para a obtenção de eletricidade não é nova. Remonta a 1881, com o físico francês Jacques-Arsène d’Arsonval. Desde a década de 1930, quando outro francês George Claude montou a primeira turbina experimental, pesquisadores do mundo todo tentam viabilizar as usinas térmicas oceânicas.
Mas faltava tecnologia. Nos últimos anos, porém, o aperfeiçoamento das ferramentas emergentes, como inteligência artificial e aprendizado de máquina, e os avanços da ciência dos materiais deram fôlego novo aos sistemas OTEC.
Um marco importante na nova era da conversão térmica oceânica foi dado recentemente pela companhia inglesa Global OTEC Resources. Fundada em 2017, a empresa é a primeira a receber autorização para operar comercialmente uma planta de OTEC. Batizada Dominique, a plataforma flutuante está prevista para ser inaugurada até 2025, em São Tomé e Príncipe, na costa oeste africana.
Com cerca de mil quilômetros quadrados e pouco mais de 220 mil habitantes, o país vive sob a ameaça constante de um colapso energético. Uma das menores economias da África, São Tomé e Príncipe depende quase exclusivamente da importação de diesel – um problema comum à maioria das nações insulares.
Com capacidade instalada de 1,5 megawatt (MW), na primeira fase de implantação, chegando a 10 MW mais para frente, a usina Dominique não resolverá por completo o problema do país, mas aliviará a pressão sobre os combustíveis fósseis.
Depósito de energia solar
Responsáveis por cobrir 71% da superfície terrestre, os oceanos funcionam como um grande depósito para o calor do sol. Mais quentes, as águas superficiais são mais leves do que as do fundo. É com base nessa diferença que as usinas trabalham. A maioria das plantas de OTEC opera com líquidos de baixo ponto de ebulição, como a amônia.
Levado a uma espécie de aquecedor abastecido com a água da camada superior dos oceanos, entre 20ºC e 30ºC, o fluido evapora. Nesse movimento, o gás gira uma turbina acoplada a um gerador elétrico. Em seguida, o mesmo vapor que entra é submetido à água mais profunda mares (5ºC, em média), se liquefaz e o ciclo recomeça. E assim segue; energia limpa 24 horas por dia, 365 dias por ano, chova ou faça sol, vente ou não.
A mil metros de profundidade
Apesar dos progressos tecnológicos, há muitos (e importantes) desafios a vencer. O principal deles é conseguir acesso a grandes volumes de água gelada do fundo do mar, explica Joel Sales, professor de engenharia naval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em conversa com o NeoFeed.
Para operar uma usina com 100 MW, potência a partir da qual uma OTEC se torna economicamente viável, os dutos para captação das águas mais profundas teriam de ter ao redor de 10 metros de diâmetro, diz o professor.
Tem mais. Para chegar a mil metros de profundidade, onde estão as águas mais geladas, a tubulação deve ser projetada para resistir à erosão e à força das correntes oceânicas, além de tempestades, ondas, ciclones e toda a sorte de intempéries. A título de exemplo, Sales conta que cerca de 60% dos gastos da usina experimental de Saga, no Japão, foram com os tais tubos. Há projetos-piloto semelhantes nos Estados Unidos e na França.
O privilégio brasileiro
O desenvolvimento e a manutenção de uma usina térmica oceânica são caros. O que, naturalmente, acaba refletindo no custo da energia. Ainda como base em uma plataforma de 100 MW, o quilowatt sai por cerca de 6 centavos de dólar. Se a planta for menor, o preço pode subir a 33 centavos. Em uma fazenda eólica, o custo gira em torno de três centavos.
Há ainda a questão do local de instalação. Nem todo oceano é adequado. A OTEC só funciona bem onde a diferença térmica nos primeiros mil metros de profundidade é superior a 20º C e a temperatura na superfície ultrapasse 24º C. Ou seja, os mares tropicais. Só os 23 milhões de metros quadrados das águas tropicais absorvem, todos os dias, uma quantidade de energia equivalente à de 250 bilhões de barris de petróleo – 2,6 vezes mais do que a produção global diária do combustível.
Não à toa o Brasil surge como forte candidato à OTEC. E é assim desde os anos 1930, quando um francês montou uma OTEC por aqui, para produzir gelo. Mas a tubulação rompeu e ele, sem dinheiro, voltou para casa. Há dez anos, a americana Lockheed começou a desenvolver um projeto com a UFRJ, mas pouco avançou.
Águas puras e nutritivas
De lá para cá, graças aos avanços tecnológicos, a OTEC volta como potencial fonte de energia limpa. A UFRJ, por exemplo, firmou convênio com um grupo de petrolíferas, liderado pela Petrobrás, para o desenvolvimento de pesquisas. “As operadoras de petróleo estão investindo em fontes alternativas de energia”, diz Sales. “E um dos usos é para alimentar suas plataformas.”
Além de fornecer energia limpa, continuamente, sem a intermitência das fontes fotovoltaicas e eólicas, a retirada da água fria das profundezas traz à tona correntes a alta pureza e ricas em nutrientes. E isso pode ajudar a revigorar a superfície já tão castigada dos oceanos – o que, ao fim e ao cabo, poderia favorecer a aquicultura e fortalecer a economia azul.