Enquanto meu marido explicava para meus filhos as várias mensagens de uma das canções mais marcantes da música pop, eu ouvia American Pie com a esperança de que, com os recentes acontecimentos, possamos aprender algo e fazer diferente.

Quando Don McLean escreveu American Pie, em 1971, construiu uma narrativa enigmática revelada, por ele mesmo, quase 45 anos depois. E confirmou o olhar crítico e saudosista diante da perda da inocência ao longo das décadas de 50, 60 e 70.

Em American Pie, McLean se refere aos assassinatos de John Kennedy e Martin Luther King, ao festival de Woodstock e a chegada do homem à Lua.

Eram tempos de revoluções e conquistas, mas também de angústia e de polarização, tanto quanto o atual, motivados por economias em frangalhos, pós Segunda Guerra, e um clima constante de tensão, com as ameaças nucleares durante as décadas da Guerra-Fria.

Naqueles anos, o medo era um sentimento compartilhado, como se não houvesse lugar seguro, algo que aprendemos ou relembramos amargamente, nos últimos meses. Se, em 1971, a vida parecia menos idílica, seguindo, como expressou o próprio McLean, na direção errada, o que dizer de 2020?

O ano de 2008 e a crise econômica mundial desencadeada pela bolha imobiliária americana ainda estão frescos na memória. E pouco tempo depois nos encontramos, novamente, às margens de um novo ciclo de ruptura, ainda mais desafiador. Porque estamos colhendo o que plantamos nos últimos 12 anos. Desigualdade! O que torna mais complexo o combate à Covid-19 e o desenho de um futuro digno para todos.

O historiador econômico, Adam Tooze, escreve em seu livro “Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World”, que as decisões para recuperar a economia, em 2008, aprofundaram a separação entre ricos e pobres pelo mundo e nos levaram a uma crise política e geopolítica, com a ascensão de extremistas e de partidos nacionalistas assumindo posições de poder na América e na Europa.

Sem ousar comparar o momento atual e as perdas de milhões de vidas, nos vemos, mais uma vez, sentados sobre uma bomba relógio econômica

Sem ousar comparar o momento atual e as perdas de milhões de vidas, nos vemos, mais uma vez, sentados sobre uma bomba relógio econômica, com endividamento público, desemprego, uma população sem qualificação profissional e acesso digital, profissionais essenciais mal remunerados, além de outros gaps que se aprofundaram. Tudo indica que é hora de parar e respirar.

O Fórum Econômico Mundial se adiantou no chamado para o Reset do Capitalismo, tema do seu tradicional encontro de começo de ano, em 2021. O esgotamento do modelo econômico que dá sentido à nossa forma de viver e de nos relacionarmos, nas diferentes esferas, emite holofotes de alerta há alguns anos. E está nas mudanças climáticas a força dos argumentos de investidores ao exigirem negócios que cuidem das externalidades, e atuem em colaboração para criar mercados em sintonia com um futuro mais inclusivo e justo.

Exemplo recente é o da BlackRock, maior gestora do mundo, ao punir 53 empresas por não demonstrarem progresso nas ações para reduzir o aquecimento global. Entre elas a Volvo e a ExxonMobil. Depois de acusada de omissão, a BlackRock se posicionou e cumpriu a advertência feita às investidas por não compliance com questões climáticas.

A gestora votou contra a reeleição dos diretores dessas empresas. E, para citar outro movimento de pressão positiva, vale lembrar o pedido de empresários e de investidores, nacionais e internacionais, para que o governo brasileiro se movimente pela preservação da Amazônia e pelo fim das queimadas – com número recorde este ano.

A sensação é que, independentemente da crise, adotamos, até agora, as mesmas velhas ferramentas para resolver nossos problemas. Talvez seja o momento de refletirmos sobre novas coalizões, nacionais e globais, que se debruçam sobre desafios atuais com um olhar fresco, diverso e comprometido com o futuro, o nosso futuro interconectado com o do planeta.

Felizmente, há uma movimentação intensa neste caminho, que mostra ser possível construir prosperidade inclusiva, de longo prazo, a partir do fomento de novos mercados, mais verdes, renováveis e com olhar para o que é viver com dignidade. A Covid-19 é o nosso grande teste e a chance de fazer melhor e incluir. Quem sabe a American Pie, em 2020, seja reescrita para entoar que estamos, pela primeira vez em muitos anos, no caminho certo.

*Luciana Antonini Ribeiro é sócia-fundadora da EB Capital

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