Após 40 anos de uma carreira intensa e gratificante no mercado financeiro, decidi realizar uma transição definitiva da vida executiva. Sem dúvida, foi um dos processos de reflexão mais profundos pelos quais já passei — diferente, por abrir espaço ao novo, e empolgante, por resgatar sentimentos antigos de curiosidade e descoberta.
Compartilho aqui as várias etapas do que vivi até chegar a esta nova realidade, que existe, é vibrante e que estou começando a experimentar com prazer:
Não ignore os sinais de desconforto
Tudo começa com um desconforto: algumas dinâmicas passam a incomodar, os processos tornam-se mais entediantes e o ganho de aprendizado compete com um esforço imenso de articulação, comprometendo o impacto que você deseja alcançar. A ambição, a adrenalina, a relação com as equipes e o significado ainda estão presentes, mas o equilíbrio geral entre energia e resultados transformacionais parece se desestabilizar.
Você resgata seus momentos de transição anteriores e se pergunta novamente: será que este arranjo atual faz sentido para o que estou buscando? Outros fatores tornam esse questionamento ainda mais latente, ora acentuando, ora aliviando a pressão interior: suas relações afetivas, seu tempo de carreira, suas ambições e motivadores em termos de legado e propósito, seu nível de autonomia e liberdade na gestão do tempo e, não menos importante, sua segurança financeira. Se, mesmo considerando tudo isso, a pergunta persiste, não a ignore; siga em seu processo de reflexão.
A busca da resposta: o dilema entre fracasso e sabedoria
Logo surge um dilema principal: este movimento é um fracasso ou um ato de sabedoria? Aprofundar-se nos seus reais sentimentos, separando o que ainda motiva do que já perdeu o sentido, é o caminho. Isso exige método e sensibilidade: o que te faz feliz, o que seu coração diz, o que a liberdade pode proporcionar em termos de vínculos, aprendizados e novos campos que sua rotina incansável restringia. E, a partir disso, agregar a perspectiva do seu olhar para o futuro. Quais são os novos objetivos sinalizados para você? O que o sucesso realmente significa agora?
Ao equilibrar esse diagnóstico com seus modelos mentais de decisão, é possível avaliar se há espaço para reacender a motivação e validar se aquela proposta de valor pode voltar a fazer sentido ou, caso contrário, se todas as alternativas para criar um campo de desenvolvimento mais fértil para o seu momento foram, de fato, esgotadas. Ao processar tudo isso, seu instinto, aplicado em momentos decisivos da vida, vai te responder com precisão: quero mais uma rodada ou, de fato, chegou a hora de fazer algo diferente?
No meu caso, compreendi que havia chegado a hora, resultado de uma reflexão autêntica e, portanto, sem sofrimento. Tive uma sensação de alívio, clareza, tranquilidade, orgulho pela coragem da escolha e entusiasmo pelo que estava por vir.
A decisão é solitária
Logo percebi que essa decisão seria solitária; seu peso e relevância só poderiam ser verdadeiramente compreendidos por mim. O entorno, mesmo que muito próximo, não dimensiona o significado e não necessariamente demonstra a empatia que se imagina ou espera. É importante que você se satisfaça com seu processo sem depender de validações e apoios externos. As reações dos outros são, na maioria das vezes, reflexos deles mesmos — expressam seus desejos, inseguranças e medos. Se essas reações ressoarem fortemente em você, talvez ainda exista alguma insegurança a ser trabalhada. O significado do movimento e o desenho do futuro devem ser autônomos, apropriados com maturidade por você, respeitando a dinâmica dos outros.
Pull the trigger: a negociação
Decisão tomada, sentimento de desapego, olhar para o futuro; seu círculo de confiança comunicado e entra a fase da negociação, que para muitos pode ser uma condição precedente, enquanto para outros a convicção é tão grande que esse tema se torna secundário. É importante ter clareza das potenciais assimetrias de expectativas de tempo e condições para evoluir para uma conversa convergente. Se existem muitas incertezas associadas a como sua contribuição vai se materializar frente à sua expectativa de reconhecimento justo, isso pode ser um ponto de atenção a ser reconciliado. Mesmo nos casos de reconhecimento mútuo ao final do ciclo, esse processo pode ser emocionalmente exigente. Ser genuíno, razoável, pragmático, sem deixar de expressar seus desejos e buscando uma boa interlocução com quem decide, são fatores determinantes para o sucesso, garantindo um fechamento de ciclo positivo sem nenhum sentimento de perda.
A ressaca emocional: a irrelevância e o vazio
Com a materialização da negociação, surge uma ressaca emocional, um cansaço e uma exaustão. Finalmente, você soltou o fio desencapado, e aquilo que sustentou e se acumulou por muito tempo vem como uma onda que te dá um último caldo. Você começa a processar alguns aspectos práticos do que será sua nova realidade: a ausência da plataforma que implica a perda do sobrenome, do poder e das relações associadas ao seu empregador, elementos que te conferiam status e se personificavam em você. Se o seu ego não for bem trabalhado e você não compreender que, a partir de agora, sua essência, seu histórico, seus valores, suas verdadeiras relações e seu repertório serão seu pilar para o futuro, a sensação de insignificância e de perda de prestígio pode se intensificar. Da mesma forma, é importante ter desprendimento para se adaptar à ausência da estrutura, dos recursos, das pessoas à disposição e de uma renda garantida.
Todas essas perdas geram a sensação de irrelevância e insegurança; mesmo que tecnicamente você esteja equilibrada, a dúvida é sobre o quão confortável você vai lidar com esse novo status. E o que pode ser ainda mais desafiador é a ausência de uma rotina e de uma atividade clara, de uma agenda, do que fazer com o tempo, do vazio. Esse vazio, intensificado pelo desconhecido, revela uma vulnerabilidade importante. Mesmo com preparação, planejamento e alguma exploração dos novos universos, a realidade que se apresenta é totalmente nova. E é justamente aí que reside uma oportunidade: buscar esse vazio e sustentá-lo como fonte de oxigenação para construir um novo escopo que te realize. Sua convicção e confiança serão os elementos que vão te guiar nesse novo caminho.
Uma transição sem estigma
Tive o privilégio de viver uma transição ordenada e longa, o que me permitiu preparar as equipes, os conteúdos, fazer as despedidas, seguir trabalhando e entregando o meu melhor, mas agora com liberdade emocional. Foi um processo inédito, pouco comum no meu segmento, e que adorei. Convicção e profissionalismo trazem naturalidade e eliminam o estigma clássico nessas situações. As dinâmicas organizacionais de hoje, com ciclos mais curtos e mais táticos, podem ser úteis e muito potentes tanto para o colaborador individual quanto para as empresas. Senti que esse arranjo que vivi foi inovador; tanto eu quanto a organização nos beneficiamos ao máximo e contribuímos mutuamente com o que tínhamos de melhor nesse período.
Paralelamente, você começa a explorar o mundo lá fora: novos campos de aprendizado, novos grupos de pessoas, novas redes de parceria, novas frentes de atuação, novos ares e estímulos. Essa fase de descoberta é muito estimulante; muitas janelas se abrem e você começa a experimentar um mundo que não conhecia. A mudança de rotinas e horários, os cafés fora de hora, as conversas sem a pressão do tempo e com profundidade ajudam a desenhar e depurar um primeiro traçado com novas avenidas a explorar. Mas é importante reforçar: confie em você. Não espere algo mais concreto das pessoas — as trocas que surgem ao longo do caminho são valiosas justamente por gerarem insights e provocações que enriquecem seu diagnóstico e seu mapa mental. A construção daqui para frente é exclusivamente sua, guiada pelo seu repertório, suas competências e pela força que vem da sua própria trajetória.
Os medos inconscientes
Com a cabeça mais arejada, você é surpreendida por medos inconscientes, porém genuínos: medo de procrastinar, de se tornar fútil e não aproveitar o tempo que agora você tem total controle, e voltar a repetir o padrão de uma agenda intensa, muito provavelmente sem qualidade; medo do tédio pela ausência de um novo propósito e por uma rotina que você pode acreditar ser de menor valor; medo de se tornar excessivamente econômica e não querer usufruir o que você construiu em termos de patrimônio, ao invés de simplesmente ter uma maior consciência dos seus gastos e uma gestão ativa do seu portfólio; medo de se sentir uma estranha e invadir a rotina estabelecida da sua casa; medo de ser punida por escolher uma vida mais livre e com menos responsabilidades formais. Eles são sinais de adaptação, não de fraqueza; enfrentá-los com consciência dá lugar à confiança.
Reaprender
Todas as pessoas que foram executivos por muito tempo viveram décadas de intensidade, em constante vigilância, processando e decidindo com um grau de agilidade imenso. Sair desse automatismo, mais do que sedimentado, requer se disponibilizar a reaprender com disciplina e paciência. O celular pode deixar de ser seu principal companheiro, os dias de descanso serão de descanso, as leituras não precisam mais ser feitas na diagonal, sua produção intelectual pode ser agora registrada e ressignificada. O multitasking é substituído por calma, profundidade e presença no falar, fazer, escrever, ler, absorver, decidir e conviver; seu tripé físico, emocional e espiritual é reequilibrado por meio de conexões nutridas por mais disponibilidade e tranquilidade por estar inteira. É hora de se reapropriar e se reconhecer com uma identidade renovada, tirando camadas que não fazem mais sentido e ativando outras que haviam sido esquecidas, vivendo integralmente e em sincronicidade com este novo tempo.
Let it flow
No que tange ao futuro, desprenda-se e deixe fluir. Elimine a necessidade de controle, de produtividade e acredite no fluxo natural das coisas, lembrando que a liberdade elimina qualquer dependência. Tenha paciência com o que não está resolvido, sustente e viva este desconhecido. Parte do que você já colocou energia vai se mostrar efetivo, enquanto outras frentes logo perderão sentido e situações não imaginadas se apresentarão naturalmente para você. Esta é a dinâmica deste novo ciclo, onde você é o protagonista de suas causas, do seu projeto de vida, com propriedade e coerência entre o que você pensa e faz.
*Maitê Leite trabalhou por 40 anos em bancos estrangeiros no Brasil e no Reino Unido, tendo tido posições de C-level nos últimos 20 anos. Iniciou a sua carreira no Citibank, fez parte da integração do ABN Amro com o Banco Real, foi Global COO para Mercados Emergentes no ABN Amro/RBS em plena crise de 2008; voltou ao Brasil como COO Regional para América Latina do Deutsche Bank onde posteriormente assumiu a posição de CEO em 2018. Sua última função foi como VP Institutional e membro do Comitê Executivo do Banco Santander Brasil.