Começa na quinta-feira, 20 de julho, às 4 horas da manhã, no estádio Eden Park, em Auckland, a 9ª edição da Copa do Mundo de Futebol Feminino. Quando o juiz apitar o início da partida entre Nova Zelândia e Noruega, o que estará em jogo vai muito além dos gramados.
Cada uma a seu modo e todas juntas, as 736 atletas convocadas para o campeonato contarão histórias de perseverança, resiliência e superação. Todo drible, passe ou bola na rede traz em si a luta pelo fim das iniquidades de gênero no esporte.
Com uma mensagem precisa (e surpreendente), a campanha da agência Marcel para a empresa de telecomunicações Orange, patrocinadora da seleção francesa, virou uma espécie de porta-voz das jogadoras dos 32 países participantes da competição.
Em um minuto e 56 segundos, o vídeo “Les actions folles de l’equipe de France qu’on a tous oubliées” (algo como “Os movimentos malucos da equipe da França que todos nós esquecemos”, em tradução livre) mostra lances e gols formidáveis, protagonizados por estrelas da seleção masculina, como Kylian Mbappé e Antoine Griezmann.
Ao fundo, narradores e comentaristas eufóricos. As imagens em campo são entrecortadas por flashs de torcedores igualmente animados. Aos 50 segundos de filme, porém, um corte e a legenda: “Só os Bleus para nos proporcionar essas emoções”. Bleus, “azuis”, é o modo como os franceses se referem à seleção masculina.
“Entretanto, não foram eles que vocês acabaram de ver”, sinaliza o letreiro seguinte. Surpresa! Aquele futebol maravilhoso não é deles. E, sim, delas. Da capitã Wendie Renard e suas “bleues”.
Graças aos recursos da inteligência artificial, Griezmann aparece, no filme, ora na pele de Sakina Karchaoui ora na de Eugenie Le Sommer. E Mbappé, na de Delfine Cascarino. O resultado é impressionante; impossível dizer que as cenas são montadas.
Mas não é sobre tecnologia, como defende Christel Heydemann, CEO da Orange, em post no LinkedIn.
“Para além de uma proeza técnica, este filme nos obriga a nos confrontarmos com nossos preconceitos”, escreve ela. Em duas semanas, desde seu lançamento no YouTube, as visualizações chegam a 4,6 milhões.
Apesar das conquistas da sociedade, ao longo das últimas seis décadas, a discriminação ainda persiste, em alguns setores mais do que em outros. No futebol, as diferenças são abissais. As vitórias femininas seguem ofuscadas pelas masculinas, como retratado no anúncio da Orange. Em comparação aos jogadores, para elas, tudo é sempre menos. Menos dinheiro, menos atenção, menos prestígio – e acontece no mundo todo.
Ninguém melhor do que a maior jogadora da atualidade, a alagoana Marta, para ilustrar as desigualdades. Nascida em Dois Riachos, no interior de Alagoas, a atleta, de 37 anos, foi eleita seis vezes a melhor do mundo, cinco delas consecutivas, um recorde não apenas entre as mulheres, mas também entre os homens.
Marta, a camisa 10 da seleção
Desde 2015, Marta é a maior artilheira das seleções brasileiras feminina e masculina. E, mesmo assim, não ganha nem 1% dos rendimentos de Neymar, que nunca foi eleito o melhor atleta do mundo.
De acordo com o jornal espanhol “Marca”, a jogadora recebe cerca de US$ 400 mil, por ano, e sua fortuna está avaliada em US$ 13 milhões, o que faz dela a jogadora mais rica da Copa 2023. A disparidade entre o salário dela e de Neymar seria apenas uma questão de mercado, alguns justificam.
Como o futebol masculino tem mais visibilidade e proporciona mais engajamento, naturalmente, movimenta mais dinheiro. O problema, porém, é mais profundo. Reflete uma discriminação histórica, ao longo de toda a cadeia esportiva.
No Brasil, por exemplo. Em 1941, a ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954) decretou o futebol proibido para mulheres. O veto só cairia em 1979. Estrela da seleção feminina na década de 1990, Sisleide do Amor Lima, a Sissi, hoje com 56 anos, já contou, por diversas vezes: no mundial de 1999, na China, o time brasileiro jogou com as roupas da equipe masculina.
Na luta por igualdade de oportunidades, aqui e no mundo, a última copa, a da França, em 2019, foi um marco. Pela primeira vez, as nossas atletas jogaram envergando um uniforme desenhado para elas –aquele que trazia na gola, a inscrição “Mulheres Guerreiras do Brasil”.
Mas, no mesmo campeonato, Marta jogou com chuteiras pretas, em protesto pela falta de patrocínio. Ela repetiria o manifesto na Olimpíada de Tóquio, em 2021.
O mapa do futebol feminino
No mapa da Fifa com os países líderes em número de jogadoras profissionais, o Brasil sequer aparece. Na liderança, estão os Estados Unidos com 1,6 milhão de atletas. Em segundo lugar, lá longe, vem o Canadá (290 mil), seguido pela Alemanha (197,5 mil).
“Com 200 milhões de habitantes, era para o Brasil ser o maior país do futebol feminino”, diz Amir Somoggi, sócio-diretor da consultoria Sports Value, em conversa com o NeoFeed.
Em sua opinião, o problema vem lá de trás, no modo como a atividade física é tratada nas escolas. Esporte, em geral, não está associado à saúde. “Então, menino joga futebol porque é divertido e menina brinca de boneca”, completa ele.
Mesmo quando elas optam para participar de alguma modalidade, costumam ser encaminhadas para o vôlei. “O futebol brasileiro é muito machista”, sintetiza Somoggi.
Em média, apenas 1% dos recursos dos clubes vão para o futebol feminino. Somoggi lembra uma propaganda da Puma. A gigante alemã de materiais esportivos construiu uma réplica de um campo, em uma estrutura inclinada de 4,5 graus com 2,2 metros de altura no ponto mais alto.
Em seguida, a empresa convidou times masculinos para jogar na ladeira. É assim que as brasileiras se sentem. A competição na França bateu recorde de audiência. Cerca de 1,1 bilhão de torcedores, ao redor do planeta, acompanharam os jogos pela televisão e internet – um aumento de 30% em relação ao torneio de 2015, no Canadá, segundo a Fifa.
Das dez maiores audiências, quatro tinham o Brasil em campo. Os jogos mobilizaram 165,63 milhões de pessoas ao redor do planeta. A partida mais vista, depois da final entre Estados Unidos e França, foi o embate entre nossas meninas e as francesas, nas oitavas de final, com 60,67 milhões de telespectadores. O Brasil perdeu por 2 a 1, na prorrogação, mas provou ser também o país do futebol feminino.
Mesmo sem o apoio da CBF. Os custos com a seleção masculina somaram R$ 196 milhões, em 2022. Os salários dos jogadores e os gastos com administração representaram R$ 186 milhões. Com as seleções de base e feminina, foram R$ 73 milhões. Outro sinal inequívoco do descaso: as mulheres não têm uma estatística só para elas.
As expectativas em relação a Copa 2023 são enormes. Mais de um milhão de ingressos já foram vendidos. A lista de patrocinadores também aumentou. Coca-Cola, Adidas e Dalian Wanda Group formam o primeiro time de parceiros da Fifa. Uma categoria abaixo estão Visa e Xero. Há de se levar em conta os patrocínios regionais e individuais.
“Testemunhamos mudanças históricas em prol da equidade no futebol nos últimos anos, e a Visa está empenhada em municiar essas mulheres resilientes, com as ferramentas e os recursos para que elas continuem trabalhando pela igualdade de condições”, afirma Andrea Fairchild, vice-presidente sênior e líder de patrocínios, da multinacional de serviços financeiros, em comunicado.
A audiência via televisão e internet deve bater 1,2 bilhão de pessoas, nas contas de Somoggi. Com a alta de patrocinadores e bilheteria, a Fifa aumentou o valor total de prêmios em dinheiro para US$ 150 milhões. É o triplo do oferecido em 2019 e dez vezes maior do que o distribuído em 2015. Mas ainda está bem abaixo dos US$ 440 milhões pagos aos homens, no Qatar.
Mercado para o futebol feminino, como se vê, existe. Diz Somoggi: “Essa copa é a copa da virada!”