Hollywood ainda tem um longo caminho até corrigir a desigualdade racial nas telas. Os negros representaram 27,6% dos protagonistas de filmes que estrearam nos cinemas dos Estados Unidos no ano passado.

A discrepância foi ainda maior, de 5,5%, quando analisada a participação de diretores negros nas 146 produções de maior bilheteria lançadas nos país. Os dados correspondem ao último levantamento sobre diversidade no cinema, realizado pela Universidade da Califórnia (UCLA), em Los Angeles.

A cidade também foi sacudida pela onda de protestos antirracistas que se espalha pelos EUA e pelo mundo desde a morte de George Floyd. Ele foi morto em Minneapolis, no último dia 25, sufocado por um policial branco que se ajoelhou sobre o seu pescoço.

Desde 2011, o primeiro ano do relatório que analisa a produção de Hollywood por raça e gênero, a participação negra aumentou. A porcentagem de negros como personagens principais quase triplicou, passando de 10,5% para 27,6%.

A melhora foi possivelmente influenciada pelo #OscarsSoWhite (#OscarsTãoBrancos). O movimento surgiu nas redes sociais em 2015, gerando polêmica e pedindo mais diversidade na premiação da Academia.

Para especialistas, no entanto, as mudanças só ganharão peso quando cargos importantes na indústria, como os de diretores, roteiristas e executivos, também forem ocupados por mais negros.

Segundo o estudo da UCLA, 93% dos executivos dos estúdios, os profissionais com o poder de decisão sobre quais filmes serão produzidos, são brancos na Hollywood de hoje.

Segundo o estudo da UCLA, 93% dos executivos dos estúdios, os profissionais com o poder de decisão sobre quais filmes serão produzidos, são brancos

“A indústria cinematográfica é tão moldada pelo racismo estrutural quanto todas as outras instituições dos EUA. E é isso que o cinema reproduz”, diz a historiadora americana Micki McElya, especializada na formação racial nos EUA desde a Guerra Civil até o presente.

“Sem negros em todas as facetas do cinema, os estereótipos da supremacia branca e o repertório de negros como serviçais e criminosos não serão desenraizados”, completa ela, lembrando que muitas vezes o negro é o primeiro a morrer nos filmes.

Destaques na cena

É esse cenário que reforça a importância de filmes mais comerciais assinados por negros. Entre eles, “Pantera Negra” (2018), “Corra!” (2017) e as obras de cineastas como Spike Lee e Ava DuVernay – ela dirigiu “Selma” (2014), drama que resgata a luta de Martin Luther King Jr. para garantir o direito ao voto aos afro-americanos.

O cinema independente já fez muitos esforços para desafiar os clichês sobres os negros nas telas, mas com alcance muito menor. “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016), que consumiu apenas US$ 4 milhões, se tornou uma exceção, pelo fato de ter conquistado o Oscar de melhor filme.

Desde “Faça a Coisa Certa’’ (1989), que o projetou internacionalmente, Spike Lee sempre dá maior visibilidade à questão racial nas telas. “Malcolm X’’ (1992), cinebiografia sobre o ativista americano, um dos líderes do movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA, ganhou duas indicações ao Oscar.

“Infiltrado na Klan” (2018), sobre detetive negro aceito por engano na Klu Klux Klan nos anos 70, rendeu a Lee o seu primeiro Oscar, de melhor roteiro. Mas a produção acabou perdendo a estatueta de melhor filme para “Green Book: O Dia” (2018), a visão de um branco (o diretor Peter Farrelly) sobre a segregação racial.

“Pantera Negra”, a primeira superprodução de heróis da Marvel com elenco negro, não só conquistou três prêmios Oscar (trilha sonora, figurino e desenho de produção) como arrecadou mais de US$ 1,3 bilhão de bilheteria ao redor do globo.

O filme foi um fenômeno, na opinião do escritor americano negro Todd Steven Burroughs. Ele é autor do livro “Marvel’s Black Panther: A Comic Book Biography, From Stan Lee to Ta-Nehisi”, publicado nos EUA, em 2018.

“De um lado, ‘Pantera Negra’ representa o triunfo da hegemonia da mídia americana, por ser um produto da Disney que apresenta, em seu clímax, um agente da CIA derrubando revolucionários africanos. Por outro, ainda conseguiu satisfazer a necessidade psicológica do afro-americano de se ver como um povo bonito e poderoso”, diz o escritor.

Ainda assim, na visão do escritor, “Pantera Negra” nada mudou em Hollywood. “A obra apenas mostrou o poder de vender uma marca da Disney e da Marvel”, afirma Burroughs.

O autor lembra que o público negro é muito leal (“sobretudo quando o assunto é o cinema de terror nos EUA”), o que também poderia indicar uma estratégia comercial por parte da indústria, ao aumentar o número de filmes com protagonistas negros nos últimos anos.

O levantamento da UCLA também analisou o negro como espectador. Eles teriam comprado ao menos 50% dos ingressos de nove dos dez filmes de maior bilheteria no ano passado, liderados por “Vingadores: Ultimato’’ (2019).

“Pantera Negra”, a primeira superprodução de heróis da Marvel com elenco negro, conquistou três prêmios Oscar e arrecadou mais de US$ 1,3 bilhão de bilheteria

Em 2019, o filme preferido da plateia negra, entre os títulos protagonizados por afro-americanos, foi “Queen & Slim”, assinado por Melissa Matsoukas, da nova geração de cineastas negros. É o retrato do primeiro encontro de um casal negro – tudo vai bem até a dupla ser parada no trânsito por um policial branco.

“Todo povo precisa ver histórias sobre si mesmo nas telas", diz Micki McEly. “De preferência, tramas que celebram, desafiam, abrem seus olhos para novas possibilidades, convidam à reflexão e até encorajam a lutar contra os sistemas de opressão.”

De olho no noticiário atual, a historiadora teme pela cobertura dada pela mídia às manifestações antirracismo, que muitas vezes terminam em depredações, incêndios e confrontos violentos com a polícia nos EUA.

“A Fox News está apresentando uma versão dos protestos e suas causas totalmente divorciada da realidade”, afirma. “É racista e espalha o medo, encorajando ainda mais a violência branca.”

Micki espera que a cobertura pare de se concentrar tanto nos danos materiais causados pelos protestos. “Como se isso pudesse, de alguma forma, ser equivalente às vidas negras”, diz ela.

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