Washington DC - Com um pau de selfie, um homem filma a si mesmo. Ele mantém uma mão no coração e os olhos fechados enquanto reza pedindo por dias de paz. Às suas costas, dezenas de militares armados com fuzis que absorvem a luz do sol, protegem o que se pode ver do Capitólio, na Maryland Avenue: a ponta abobadada do prédio construído em 1793.
Com exceção do religioso, a cena "de guerra" se repete ao longo de toda a extensão do Congresso e da Casa Branca, que estão cercados por grades e monitorados por milhares de homens, 24 horas por dia.
A área restrita aos motoristas se estende do norte de Dupont Circle, ao leste da 6th St., do sul da Southeast até a Southwest Freeway e da região oeste até o rio Potomac. Uma área menor, mais próxima aos prédios históricos, está totalmente fechada para veículos.
Caminhar, portanto, é a única opção ali. Na trilha rumo nordeste, chega-se aos dois quarteirões que compõem a recém-batizada Praça Black Lives Matter, que ganhou esse nome depois das manifestações pró-causas raciais, em decorrência da morte de George Floyd, em maio de 2020. Ali, lojas, bares e restaurantes estão protegidos por tapumes de madeira, antecipando possíveis tumultos e protestos violentos, mesmo com a segurança parruda.
Cerca de 25 mil homens da Guarda Nacional foram deslocados para a capital para formar a fortaleza americana que recebe a cerimônia de posse do presidente democrata Joe Biden e da vice-presidente Kamala Harris.
O cuidado excessivo é um reflexo direto da convulsão social que culminou com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, por apoiadores de Donald Trump, o candidato derrotado nas eleições de novembro. Por isso, todo mundo é visto (e às vezes tratado) como um suspeito em potencial, com direito a policiais questionando o motivo de câmeras e curiosidades.
Outros homens fardados, porém, são mais amistosos, cumprimentando e engajando em conversas sobre os preparativos para a festa da posse de Joe Biden, que pode custar até US$ 200 milhões, de acordo com o The New York Times.
Esse clima "morde e assopra" que doura sob o céu azul de Washington DC promete não esvaziar o governo Biden tão cedo. A polarização da população local é um dos primeiros desafios à caneta do 59º presidente dos Estados Unidos, que quer colocar em prática uma pequena revolução já nos seus primeiros 100 dias de governo.
De 0 a 100
Dada a bandeira de largada, Biden pretende acelerar medidas urgentes. Já no seu primeiro dia de governo, quer assinar um mandato tornando o uso de máscaras faciais obrigatórias e orquestrar a distribuição de 100 milhões de doses de vacina, além de concentrar suas forças em restabelecer as atividades escolares presenciais.
"Meus primeiros 100 dias não vão acabar com o vírus Covid-19. Não posso prometer isso", disse Biden, em um evento em Wilmington, Delaware, em dezembro do ano passado. "Não entramos nessa confusão rapidamente e não vamos sair dela rapidamente, vai levar algum tempo. Mas estou absolutamente convencido de que em 100 dias podemos mudar o curso da doença e mudar a vida na América para melhor."
Colocar a pandemia como prioridade máxima é um ótimo sinal, na opinião do economista Dean Baker, um dos fundadores do Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington. “É impossível pensar em retomada econômica se a pandemia não estiver sob controle. Minha aposta é que, num primeiro momento, o novo pacote de estímulo que já vem sendo discutido seja finalmente aprovado, junto a diretrizes de segurança para a reabertura do comércio”, disse o economista ao NeoFeed.
Na semana passada, Biden pediu ao Congresso para se apressar nos trâmites referente a uma plataforma de resgate econômico de US$ 1,9 trilhão. O democrata pretende distribuir US$ 1.400 em pagamentos diretos a americanos e estruturar um programa federal de seguro-desemprego de US$ 400 por semana. A taxa de desemprego nos Estados Unidos é de 7%.
Além disso, Biden pretende pedir ao Congresso outros bilhões de dólares para programas federais de nutrição e assistencialismo, bem como elevar o salário mínimo para US$ 15 por hora – atualmente, o valor é definido por cada estado. Programas de financiamento de pequenas empresas também estão na agenda.
Outra promessa que Biden pretende cumprir na sua primeira semana de atuação é quanto ao cuidado com os imigrantes. O presidente vai submeter para aprovação um plano que beneficiaria 11 milhões de imigrantes sem documentos. Notícias preliminares sobre o assunto dizem que a estrutura desse projeto envolve um caminho de oito anos para que esses imigrantes sejam reconhecidos como cidadãos americanos.
Biden ainda não se pronunciou sobre os quase de 10 mil hondurenhos que avançam as fronteiras da Guatemala rumo aos Estados Unidos. Ainda não se sabe quando esse grupo deve chegar ao país.
Enquanto apaga esse "incêndio", o presidente democrata tem de lidar ainda com a força de uma de suas principais bandeiras: o meio-ambiente. Sob a nova gestão, os Estados Unidos devem voltar a integrar o Acordo de Paris, o tratado climático com duras metas de redução da emissão de carbono, assinado em 2016 por diversos países. O acordo prevê que os EUA reduzam em 28% sua emissão de gases poluentes até 2025.
Embora existisse a expectativa de que o democrata abraçasse a pauta progressista do Green New Deal, uma proposta mais ousada para combater a mudança climática de uma ala do Partido Democrata, Biden optou por outro plano.
O democrata defende a injeção de US$ 1,7 trilhão de investimento federal em pesquisas de tecnologias “limpas”. A meta de Biden é zerar toda a emissão de poluentes dos Estados Unidos até 2050.
“A agenda do Biden não é o melhor cenário para o meio ambiente, mas das duas escolhas apresentadas aos americanos, certamente é a melhor. Eu só espero que, uma vez no poder, Biden mantenha sua postura de diálogo e abrace a opinião dos especialistas”, diz o ativista inglês Anders Lorenzen, fundador da plataforma A Greener Life, A Greener World.
Por fim, Biden deve olhar para o exterior. Segundo a professora de ciências políticas da Universidade de Georgia, Alexa Bankert, o democrata tem nas mãos o desafio de restabelecer a confiança de seus aliados e se engajar mais no cenário global. "E não falo apenas de países, mas de instituições como a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Saúde", conta ao NeoFeed.
Nada mais será como antes?
Para a Pamela Sparrow, as coisas já estão completamente diferentes. A começar por sua posição geográfica. Pela primeira vez, a servidora pública deixou a sua quente Califórnia pelo frio de Washington DC para acompanhar uma posse presidencial.
"Estou aqui para ver que a nossa democracia sobreviveu", contou Sparrow, que ao NeoFeed. "Estamos indo rumo a uma nova direção e a vice-presidente Kamala Harris é o futuro", afirmou a servidora pública, que diz não se incomodar com a distância imposta pelas barreiras de proteção.
Já o reverendo Rob Schenck, que mora nos arredores da Casa Branca há 25 anos, não esconde a surpresa com o esquema reforçado de segurança. "Acompanhei dezenas de cerimônias de posse presidencial e nunca vi nada parecido, mas eu entendo porque as coisas tenham que acontecer dessa maneira", disse ao NeoFeed.
Apesar da polarização, Schenck espera que o povo americano possa se unir para mudar. "Experimentamos um governo que fez estragos em nosso tecido social e machucou muita gente, e é hora de todos nós trabalharmos para reparar o que foi corrompido."
Diferentemente de Schenck e Sparrow, Jacob, que não quis revelar seu sobrenome, está de costas para o Congresso. Segurando uma bandeira símbolo da Revolução Americana (1765 - 1783), o americano que mora em Reno, Nevada, tem uma fila de jornalistas esperando para lhe entrevistar.
A popularidade é por sua posição política contrária à extensa maioria do público local. "Donald Trump é um gênio", diz ele a quem quiser ouvir. Depois de repetir a narrativa de que a eleição foi fraudulenta, Jacob afirma acreditar que nem tudo está perdido. "Eu acho que ele ainda tem uma carta na manga e essa partida de xadrez não acabou."
É por esses e outros motivos que, na hora da posse, Jacob promete repetir o gesto que fez nas últimas três cerimônias do tipo e virar os olhos em direção ao Capitólio para contemplar a festa que, este ano, conta com a participação de diversas celebridades.
A cantora Lady Gaga vai entoar o hino americano, precedendo o juramento de Joe Biden e Kamala Harris. Outras atrações musicais estão a cargo de Jon Bon Jovi, Justin Timberlake e Jennifer Lopez. A poeta Amanda Gorman, que em 2017 se tornou a primeira campeã do National Youth Poet Laureate in the United States, vai declamar uma poesia, enquanto um bombeiro se encarrega da leitura do Juramento de Fidelidade. Por fim, um padre e um pastor, amigos íntimos de Biden, conduzirão a bênção ao mandato.
Cumprir todos os protocolos, para a professora de história e de políticas públicas da Duke University, Nancy MacLean, é fundamental. "Acho importante marcar vitórias, porque o contrário pode ser desmoralizante", disse ao NeoFeed. "Eu acredito que a vitória de Biden e Harris, com um número de votos sem precedentes, foi algo realmente significativo. Apesar das comemorações, temos que nos manter vigilantes: o que vimos nos últimos tempos é assustador."
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