“Radioactive” poderia apenas glorificar a cientista Marie Curie (1867-1934), a primeira mulher a ganhar um Prêmio Nobel. Até porque as descobertas da polonesa naturalizada francesa revolucionaram o mundo científico, com impacto sentido até hoje.
Mas a cinebiografia que chega à plataforma de streaming Amazon Prime Video nos EUA, no dia 24 de julho, dá um passo além da homenagem. Apresenta até os desdobramentos mais obscuros dos seus avanços científicos, o que talvez fizesse Curie se sentir culpada.
À medida que se aprofunda no legado da pioneira nos estudos da radioatividade, o drama histórico mostra também o que veio depois. Afinal, suas pesquisas sobre radiação abriram caminho para o desenvolvimento futuro da bomba atômica.
“Há mais de cem anos, ninguém podia saber o que seria feito com as descobertas de Curie”, diz a diretora do filme, a iraniana Marjane Satrapi ao NeoFeed. “Como hoje nós já sabemos, é preciso pensar em ética na Ciência. O que vamos fazer com os próximos avanços: usá-los para curar ou matar as pessoas?”, pergunta ela.
À primeira vista, o longa-metragem ainda sem data para estrear no Brasil parece seguir como uma cinebiografia tradicional. Toda a trajetória de sucesso de Curie é revisitada até chegar ao ponto das repercussões de seu trabalho, sem que a cientista pudesse imaginá-las.
Próximo do desfecho é que a narrativa recorre a imagens do bombardeio de Hiroshima, no Japão, e do desastre nuclear em Chernobyl, na Ucrânia. “Lembrar o que foi resultado da radioatividade, embora Curie não passo ser responsabilizada por isso, é o que deixa o filme mais moderno. Não é uma cinebiografia empoeirada”, conta a cineasta.
Inicialmente, a câmera de Satrapi segue a personagem na juventude, depois que Curie troca a Polônia pela França para poder estudar o que gosta. Alunas do sexo feminino simplesmente não eram aceitas na Universidade de Varsóvia.
Vivida por Rosamund Pike, atriz mais conhecida por “Garota Exemplar” (2014), a primeira mulher a obter um diploma de física da Universidade Paris-Sorbonne era obcecada pelo seu trabalho. E não se desculpava por isso. Ao conhecer o físico Pierre Curie (1859-1906), o futuro marido, a cientista deixou as suas prioridades muito claras.
“Não tentei fazer dela uma personagem muito agradável. Curie era ela mesma o tempo todo. Dizia o que pensava, uma atitude que até podia ser confundida com arrogância”, diz a cineasta. E prossegue. “Há coisas que aceitamos com mais facilidade nos homens. Tomemos o exemplo de Picasso, que tratava mal as mulheres. Por ter sido um gênio, é como se ele tivesse o direito de fazer isso”, afirma Satrapi.
A cientista trabalhou com o marido na pesquisa que a levou à conquista do seu primeiro Prêmio Nobel, de Física, em 1903, dividido tanto com Pierre Curie quanto com Henri Becquerel (1852-1908). Após estudar as radiações produzidas pelo urânio, a partir do trabalho de Becquerel (o primeiro a isolar o metal e perceber que ele liberava energia), a cientista anunciou a existência da radioatividade.
Curie foi a primeira a chegar à conclusão de que a radiação que ela conseguiu medir, em seu laboratório, vinha dos próprios átomos. O termo radioatividade, criado por Curie, diz respeito à atividade dos raios na estrutura atômica do urânio. Foi assim que ela abriu novas fronteiras no campo da física, incluindo a física atômica.
A descoberta de Curie contribuiu posteriormente para que o físico neozelandês Ernest Rutherford (1871-1937), dividisse o átomo, em 1917. E, em 1942, o físico italiano naturalizado americano Enrico Fermi (1901-1954) desenvolvesse o primeiro reator nuclear.
“Por outro lado, a teoria da radioatividade foi muito importante para o combate ao câncer”, diz Satrapi, lembrando que a filha da cientista descobriu a radioatividade artificial. Inspirada pela mãe, a pesquisadora Irène Joliot-Curie (1897-1956) se dedicou aos elementos radioativos artificiais, utilizados até hoje na radioterapia, no tratamento contra o câncer.
O segundo Nobel conquistado por Curie, o de Química, veio em 1911. Ela foi a primeira pessoa a ganhar dois prêmios Nobel e ainda é a única a ter sido reconhecida em duas ciências diferentes.
O reconhecimento em Química foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio e por seus estudos em torno desses dois elementos. Foi esse trabalho de Curie que possibilitou o desenvolvimento de aparelhos de raio X.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a própria Curie levou máquinas portáteis de raio X ao front, para ajudar a cuidar dos soldados. O esforço da cientista, que aprendeu a dirigir só para isso, além de treinar equipe de mulheres voluntárias para o serviço, é resgatado no filme.
“Admiro o fato de Curie nunca ter levantado a bandeira feminista. Era como se ela pensasse: Será que preciso provar que sou melhor? Se já sei que sou melhor, o que eu teria que provar?”, conta a cineasta. “Curie fazia algo melhor do que participar de movimento feminista. Ela se comportava como igual.”
Satrapi ganhou projeção mundial ao discutir a situação das mulheres no Irã, em “Persépolis” (2007). A obra recebeu uma indicação ao Oscar de melhor animação. “Também trabalho em indústria dominada por homens (a do cinema), mas nunca penso nisso.”
A neta da cientista, a física nuclear Helene Langevin-Joliot, que Satrapi conheceu na pré-produção, pediu que a diretora incluísse uma frase de Curie no filme. Era o que pioneira pensava sobre atuar em campo predominantemente masculino. “Sofro mais com a falta de fundos do que com o fato de ser mulher’’, diz a personagem em “Radioactive”, repetindo as palavras de Curie.
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