A crise do coronavírus me fez lembrar uma frase do megainvestidor Warren Buffet: ‘Você só percebe quem está nadando pelado quando a maré baixa.’ A metáfora se aplica muito bem, a meu ver, aos efeitos da pandemia sobre a reputação de líderes empresariais.
Pegos sem “a roupa corporativa”, confeccionada para preservar a imagem em tempos normais, eles se viram forçados em tempos extremos a serem eles mesmos, recorrendo àquilo que nos distingue, como seres singulares, na hora de tomar decisões: nossas crenças e valores. Especialmente em horas difíceis, somos em grande medida o que acreditamos, agimos em relação aos outros e às circunstâncias, segundo a orientação de valores humanos, fruto de nossos princípios morais e éticos.
Postos a nu, alguns líderes ganharam pontos ao olhar da sociedade. Outros desceram ladeira abaixo. O hambúrguer do Madero, por exemplo, perdeu bastante de sua graça após as declarações de seu dono, Júnior Durski, criticando a quarentena proposta pelas autoridades de saúde, sob a alegação de que a economia não pode parar “por causa de 5 mil ou 7 mil mortes.” Algumas horas depois, já consciente da ameaça de boicote, o empresário pediu desculpas. Não convenceu.
O mesmo ocorreu com os pratos do Giraffas. Começaram a azedar minutos depois de Alexandre Guerra, ex-CEO da empresa e filho do dono, usar as redes sociais para defender lógica semelhante à de Durski. Para “restabelecer a verdade” sobre o que pensa a empresa, o fundador Carlos Guerra, em atitude surpreendente, convidou o próprio filho a deixar o grupo de acionistas e o conselho da rede.
Dias antes, Luciano Hang, dono da Havan, resolveu criticar em seu Facebook a “histeria” criada por prefeitos e governadores, ameaçando demitir mais de 22 mil colaboradores por causa da crise que, imagina, virá da paralisação econômica.
Não, felizmente não houve só projeções de catástrofe contra o isolamento sanitário. No outro extremo, a Natura anunciou o compromisso de manter o emprego dos seus colaboradores nos próximos 60 dias. Reforçou ainda que suas fábricas vão deixar de produzir as linhas de maquiagem e perfumaria, para se concentrar nos itens de higiene pessoal, além de álcool em gel e líquido, considerados, segundo a empresa, “cruciais para frear a propagação do vírus.”
A Natura não está sozinha na trincheira oposta a das empresas que enxergam um (falso) dilema entre conter o vírus e salvar a economia do colapso. Organizações como Ambev anunciaram o investimento na construção de um hospital em São Paulo. Ipê, Coca-Cola, Boticário, Cosan, Atvos e tantas outras decidiram fabricar álcool em gel. Outras empresas se apressaram a doar dinheiro para máscaras e respiradores.
O enfrentamento ao vírus, tratado como um desafio comum, derrubou inclusive as fronteiras da concorrência. Itaú, Santander e Bradesco recolheram as armas e decidiram juntos doar 5 milhões de testes rápidos. Vivo, Claro, Tim e Oi também lançaram, em conjunto, uma campanha garantindo conteúdos gratuitos e bônus de internet.
O recado por trás desses gestos públicos não deixa margem à dúvida: um momento tão dramático exige cooperação, não divisão. Nosso inimigo comum, um ente microscópico, insidioso e letal, não escolhe vítimas. E mais: uma vida preservada não tem preço, não pode ser medida em PIB e compensa o sacrifício coletivo que teremos de fazer para superar a queda da atividade econômica.
O recado por trás desses gestos públicos não deixa margem à dúvida: um momento tão dramático exige cooperação, não divisão
Nas crises, já disse Balzac, ou o coração se parte ou endurece. Por essa razão, constituem uma boa oportunidade de distinguir quem age de quem não age orientado por valores humanos, como respeito às pessoas, altruísmo, empatia, solidariedade, boa convivência, prudência, temperança e justiça.
No caso do coronavírus, basta observar as duas facções e os comportamentos predominantes. De um lado, filiam-se os críticos às duras medidas de confinamento, que contestam as autoridades públicas, ironizam o poder de fogo do vírus, minimizam as mortes, atribuem exageros à mídia e ameaçam com demissões. Nada fazem além de usar as redes sociais para pregar o caos econômico como justificativa para a tese de que o desemprego mata mais do que a doença.
(Vale dizer: diferentes estudos mostram que o problema não são as medidas de isolamento — de longe, a melhor e mais eficaz solução — mas a pandemia em si combinada com eventuais dificuldades de os governos organizarem a quarentena no tempo certo. Economistas de diferentes escolas garantem que os governos que agem rápido, logo no início da curva da doença, são os que saem mais rápido e mais fortes da crise econômica.)
Do outro, reúnem-se os que reconhecem a ameaça do Covid-19, defendem o isolamento social como estratégia dura mas justa para o conjunto da sociedade, alinham-se com a prudência dos cientistas e recomendam o home office em respeito à saúde dos seus colaboradores e da coletividade.
Usam as redes sociais para educar a população sobre hábitos de higiene e prevenção e sobre a importância do confinamento, mas também para convocar a colaboração, anunciar a doação de produtos e serviços e apoiar tanto os trabalhadores em serviços essenciais, sob risco sanitário, quanto os autônomos e proprietários de pequenos negócios, sob risco socioeconômico, justamente os primeiros - e não os grandes - a sofrerem as consequências da recessão.
Sugiro ao leitor uma análise da descrição dos líderes dos dois grupos. Note que no primeiro não há uma única menção a valores humanos. Vale dizer: não por má fé deste analista. Em nenhum momento, acessando conteúdos das redes, observei qualquer atitude que expressasse altruísmo, cooperação, solidariedade, interesse em cuidar ou servir. E não por que esses valores não existam – quero seguir crendo que eles devem existir, ainda que em estado letárgico, num compartimento escondido do lado direito do cérebro, ou serei forçado a descrer da humanidade dos humanos.
Mas porque esses valores certamente estão submetidos, mesmo em tempos de profundo incerteza para o mundo, à lógica econômico-financeira, um sistema de crenças autorreferente, egoico e narcisista, dono de uma ética draconiana, baseado num punhado de certezas muitas vezes contrárias ou até nocivas aos valores essencialmente humanos, que aceita, como naturais, o egoísmo, a competição, a deslealdade e a ideia de que o lucro, em si, justifica prejudicar pessoas e meio ambiente.
Convido o leitor a mais uma reflexão: você gostaria de ser liderado por um líder que minimiza as mortes humanas em nome da ideia de manter funcionando a economia?
Convido o leitor a mais uma reflexão: você gostaria de ser liderado por um líder que minimiza as mortes humanas em nome da ideia de manter funcionando a economia? E mais: você se sentiria tranquilo em trabalhar numa empresa cujo presidente diz, em público, que pode ter que demitir 60% do quadro numa tentativa de pressionar as autoridades sanitárias a romperem a quarentena, mesmo sabendo do risco dessa medida para a vida de milhares de brasileiros?
Se você, leitor, respondeu sim às duas perguntas, só me resta lamentar. Mas ainda é tempo de mudar de opinião. O modelo de empresa em que você acredita, e por tabela o tipo de liderança que cultua, avançam na contramão do que se discute de mais contemporâneo em gestão de pessoas e organizações. Caminham para a extinção. Poderia citar, em defesa da minha tese, as inúmeras iniciativas e manifestos pró-empresas mais sustentáveis deflagrados em todo o mundo, especialmente nos últimos dez meses. Ou a expansão de movimentos como o Sistema B, Capitalismo Consciente, Capitalismo do Amanhã.
Prefiro me ater ao mais recente Fórum Econômico Mundial, realizado em janeiro último, que dedicou um dia inteiro de discussões à ideia, muito em alta, de colocar o propósito antes do lucro. Ao contrário de outros tempos, decisões de negócio não podem mais ser vistas como meras questões de ordem técnica, eventos associados a uma realidade paralela e autossuficiente, um fato isolado da vida. São sim, cada vez mais questões de natureza ética, pois resultam em impactos que podem, no caso presente, matar ou preservar vidas numa pandemia global.
Líderes não podem ser mais tecnocratas. Precisam ser porta-vozes das aspirações da sociedade, indivíduos éticos, transparentes e íntegros, respeitosos em relação às pessoas e ao meio ambiente. Precisam, sobretudo, liderar com valores. Porque, nos tempos atuais, só mesmo os valores são capazes de gerar valor econômico e prosperidade.
Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável, consultor master, escritor, palestrante e conselheiro de empresas. Criador da Plataforma Liderança com Valores, escreveu dez livros, entre os quais “Conversas com Líderes Sustentáveis” (SENACSP/2011). É professor da Fundação Dom Cabral e do ISAE-FGV.