Depois entrar de sola no mercado global de produção de automóveis, de navios e até de trens-bala, a China mostrou que nem o céu é o limite para enfrentar as consolidadas marcas ocidentais e acaba de entregar o primeiro jato comercial de passageiros de fabricação nacional: o Comac C919.

O modelo, o primeiro avião produzido pela estatal Empresa de Aeronaves Comerciais da China (Comac), é o equivalente chinês do Boeing 737 e do Airbus A320. Com capacidade para 164 passageiros, o C919 foi o primeiro de cinco jatos encomendados pela China Eastern Airlines. E, embora a aeronave chinesa não tenha a qualidade técnica das gigantes da aviação comercial ocidental, ela promete ganhar mercado pelos bolsos dos clientes.

Trata-se de um modelo mais barato – US$ 99 milhões a unidade, contra US$ 111 milhões do Airbus 320 e US$$ 122 milhões do Boeing 737. Isso significa que o C919 deve impactar a médio e longo prazo nas vendas da Boeing e da Airbus na China, o maior e mais disputado mercado de jatos comerciais do planeta.

A China precisará de 8.485 novos aviões de passageiros e cargueiros avaliados em US$ 1,5 trilhão até 2041. Esse número representa mais de um quinto das entregas globais de aeronaves nas próximas duas décadas, estimadas em 39 mil.

Longe de ser uma cópia malfeita dos concorrentes, o Comac C919 é o primeiro grande avião de passageiros da China de acordo com os padrões internacionais de aeronavegabilidade e possui direitos de propriedade intelectual independentes.

Desenvolvido desde 2008, o modelo chinês enfrentou uma série de problemas técnicos e de restrições, incluindo pelo uso de tecnologia aeronáutica militar da Rússia e peças americanas, que atrasaram o cronograma e aumentaram o preço final do modelo (antes estimado em US$ 50 milhões).

O governo chinês sabe que o objetivo do C919 é mirar o mercado interno a médio prazo. Incialmente, a China Eastern Airlines planejava usar os próximos modelos numa empresa subsidiária de baixo custo e de voos regionais, a OTT Airlines, mas até para dar visibilidade, o novo jato deve entrar na linha Pequim-Xangai.

A exemplo dos primórdios da instalação de montadoras de carros estrangeiras, a linha de montagem do C919 tem pouquíssima participação chinesa, limitada à montagem da fuselagem e das asas do avião, uma função menor que representa apenas 25% dos custos.

Os equipamentos aviônicos são fabricados por empresas americanas como Honeywell, Collins Aerospace e outras empresas europeias. O motor da aeronave, que é a parte mais difícil, é produto de uma joint-venture entre a americana General Electric e a francesa Safran, que fabrica motores de aviação e mísseis.

Numa comparação fria, o C919 é inferior ao A320neo e ao 737 MAX, consome mais combustível, tem menor alcance e não possui rede de suporte técnico internacional. Mas o objetivo de comercializá-lo regionalmente já significa dores de cabeça para as concorrentes.

O mercado global de aviação comercial movimentou US$ 174,8 bilhões em 2022. Na região da Ásia-Pacífico, a demanda por aviação deve crescer duas vezes mais do que no Ocidente e a Comac planeja entregar 25 modelos até 2030.

As duas gigantes do setor enfrentam outros problemas. A Boeing, com sede nos EUA, está passando por dificuldades no país após dois acidentes fatais que levaram as autoridades a suspender todos os modelos 737 Max desde 2019.

A empresa disse em julho que pode obter aprovação para novas entregas, mas as tensões EUA-China e um novo acidente mortal envolvendo um Boeing 737-800 prejudicaram o progresso.

Já a Airbus está admitindo que sua meta de entregar 700 aviões comerciais este ano está “fora de alcance”, já que mais aviões do que o previsto estão parados devido a atrasos na entrega de peças.

Apesar dos problemas, a Airbus fechou em julho um pacote bilionário de vendas de 300 modelos – a maioria A320neo – para as três maiores companhias aéreas estatais da China, no valor de US$ 25 bilhões.

As entregas para a Air China e a China Southern Airlines, além da China Eastern Airlines, estão previstas para começar em 2023 e continuar até 2027, com o volume maior de entregas em 2024 – se o problema da escassez de peças permitir.