A Renault morreu. Ou melhor: a velha Renault morreu. É normal, no capitalismo, que um produto “morra” para outro nascer em seu lugar. Assim o desejo de compra permanece sempre elevado nos consumidores. A “morte” da Renault, entretanto, é bem mais complexa do que isso.
O termo parece exagerado, mas não é. Afinal, foi o próprio CEO mundial do Grupo Renault, Luca de Meo, quem apresentou, no dia 14 de janeiro, um plano estratégico cuja primeira fase foi batizada de “Ressurreição”.
Para que haja uma ressurreição, é preciso que ocorra uma morte. Na ocasião, De Meo não disse qual era o tamanho do rombo. Mas, na semana passada, o Grupo Renault divulgou o prejuízo do ano passado: € 8 bilhões. A fase de “Ressurreição” do plano vai até 2023 e tem foco total na recuperação da geração de caixa. A partir desse ponto, porém, precisamos olhar para a Renault de duas formas.
Uma é a Renault mundial. Segundo De Meo, “vamos passar de uma empresa de carros que trabalha com tecnologia para uma empresa de tecnologia que trabalha com carros, fazendo pelo menos 20% de sua receita a partir de serviços, tratamento de dados e comercialização de energia até 2030”. A Renault tem produtos, know-how e credibilidade para cumprir seus três objetivos: ressuscitar (até 2023), renovar (até 2025) e finalmente revolucionar (a partir de 2025).
A outra é a Renault do Brasil. Como gerar caixa com uma empresa que nos últimos dez anos focou em produtos de menor rentabilidade para ganhar mercado e agora precisa vender carros de maior valor?
Não será fácil, mas é possível. Há apenas um ano, a Renault ainda comemorava o 4º lugar no mercado brasileiro em 2019, com 239 mil vendas e 9% de participação. Contando só os carros de passeio, a Renault estava em 3º lugar, atrás apenas da Chevrolet e da Volkswagen. Em 2020, porém, a Renault vendeu somente 132 mil carros, caiu para 7º lugar no ranking e ficou com 6,7% de participação. Nos carros de passeio, desceu para o 5º lugar.
Com uma perda de 107 mil carros nas vendas, a Renault do Brasil ficou no vermelho. O valor do prejuízo não foi divulgado. Para voltar a dar lucro no Brasil, a Renault precisará abrir mão de sua estratégia dos últimos dez anos, que atingiu parte do objetivo.
Essa estratégia teve uma proposta ousada: substituir os carros franceses da própria Renault por carros romenos da subsidiária Dacia, porém com o logotipo da Renault.
Segundo De Meo, a Renault pretendia encher a fábrica de São José dos Pinhais com 300 mil unidades dos modelos Dacia Logan (sedã) e Sandero (hatch). Os carros, que são romenos de origem e não franceses, foram posicionados no segmento de compactos e de entrada e trouxeram uma novidade: maior espaço interno e amplo porta-malas, além de robustez. Deu certo, pois eles também eram mais baratos na produção e os preços puderam ser competitivos.
Criados na Romênia, Logan e Sandero quebraram um certo preconceito que havia no Brasil em relação à durabilidade dos carros franceses e tiveram vendas importantes. Entretanto, o mercado, que era de 3,6 milhões de carros, caiu para 2 milhões. Assim, a meta de produzir 300 mil Logan/Sandero nunca foi cumprida.
Outro carro importante da marca – e seu atual campeão de vendas – é o subcompacto Kwid. Um carro bem pequeno, para uso urbano. Segundo a Renault, mesmo estando no segmento de entrada, o Kwid é lucrativo. Isso porque o projeto é muito inteligente.
Concebido para ser leve e barato, para países emergentes como Brasil e Índia, o Kwid economiza em todos os itens possíveis. As rodas, por exemplo, têm apenas três furos e três parafusos, enquanto os outros carros têm rodas de quatro ou cinco parafusos. Cerca de 70% das peças do Kwid foram produzidas exclusivamente para ele.
A Renault quebrou o paradigma dominante de utilizar o máximo possível de peças compartilhadas com outros carros. Mas, com isso, conseguiu produzir um carro de baixo custo. Há cerca de seis meses, o Renault Kwid passou a ser atacado pelo Fiat Mobi, seu único rival.
O Mobi tem outro conceito, utiliza peças de outros modelos, mas desde que a Fiat centrou esforços nas vendas diretas, o Mobi passou a vender bem. Entretanto, se existe lucro, é pequeno. A operação da Renault com o Kwid parece mais sólida do ponto de vista financeiro.
Sandero, Logan e Kwid, por estarem no segmento de entrada, não são os carros que permitirão à Renault virar o jogo. A saída está nos SUVs e nas picapes. A Renault tem dois SUVs compactos no Brasil: o Duster e o Captur. Os dois são exatamente o mesmo carro na parte mecânica, baseados na plataforma romena.
As partes visíveis dos carros, porém, são diferentes. O Captur (modelo francês da Renault) é mais bonito e até ganhou prêmios de design. Já o Duster (modelo romeno da Dacia) atende ao consumidor que busca um utilitário esportivo de entrada mais simples e robusto.
Essa estratégia se esgotou. O consumidor não quer mais um Captur que é francês só na aparência, mas romeno na alma. Por isso, a Renault já encomendou da França um novo motor 1.3 turbo de 170 cavalos. Esse motor foi desenvolvido em conjunto com a Mercedes-Benz. Não havia outra saída.
Enquanto o Duster permanecerá (por enquanto) com o motor 1.6 aspirado produzido no Brasil, o Captur ganhará o turbo e será ao mesmo tempo mais econômico e mais potente. Como o motor virá da França, a Renault pagará 2% de taxa de importação.
Junto com isso, o novo Renault Captur ganhará aprimoramento no design e ganhará materiais mais nobres em seu interior. Para cobrar mais caro pelo Captur, a Renault terá que ir além do visual. A montadora precisará entregar de fato um produto mais “premium”, com materiais soft touch no interior e novas tecnologias de conforto, conectividade e segurança.
Mesmo sendo fabricado na plataforma romena, o Captur ficará “mais francês” para poder ser mais caro e lucrativo. O único problema é que esse Captur mais sofisticado vai concorrer num segmento congestionado por concorrentes de peso, como Volkswagen T-Cross, Jeep Renegade, Chevrolet Tracker, Nissan Kicks e Hyundai Creta.
Outro veículo que a Renault deverá olhar com carinho para sua “ressurreição” é a inédita picape Alaskan. Ela foi lançada há apenas três meses na Argentina, resultado de uma parceria com a Mercedes-Benz e a Nissan, mas é um produto desenvolvido pela engenharia da França.
A Renault, por enquanto, avalia que a situação econômica na Argentina é muito frágil, com inflação de 46%, mas dá para apostar que em dois ou três anos a Alaskan estará no portfólio brasileiro. Por ora não, pois não basta trazer o carro; é preciso investir em mídia, em treinamento da rede de concessionárias e em peças de reposição. Não há caixa para isso.
Para aumentar a lucratividade, a Renault também precisará reduzir as vendas para locadoras. Em seguida, da mesma forma que fará com o francês Captur, a Renault deverá “afrancesar” o romeno Duster, dando a ele o mesmo 1.3 turbo importado. Assim, finalmente terá dois SUVs posicionados mais acima, com equipamentos mais sofisticados e mais próximos da realidade global da Renault, da qual a filial brasileira tinha se descolado.
Se não há muito o que fazer com Sandero, Logan e Kwid, o Renault Stepway (versão aventureira do Sandero) tem boas chances de ser reposicionado, para servir como porta de entrada ao segmento de carros mais altinhos, considerando que os SUVs ficaram muito caros. Uma nova geração, já revelada na Romênia, foi descartada para o Brasil, por enquanto.
O Brasil é o sétimo maior mercado da Renault no mundo. Fora dos olhos do grande público, mas ajudando a marca a superar a crise financeira provocada pela pandemia de coronavírus, a Renault tem outros trunfos: o furgão Master é líder de seu lucrativo segmento, com mais de 5 mil vendas/ano. E o Kangoo, um compacto multiuso, está em 5º lugar no mercado de veículos elétricos, pois é vendido para empresas que pretendem reduzir a emissão de carbono. Esse nicho está crescendo. Foram 65 unidades em 2020.
Diante de tudo isso, uma coisa é certa: a Renault dos carros baratos, de alma romena, morreu. A ordem agora é ocupar um segmento mais abastado. De alguma forma, isso já estava no horizonte da Renault lá atrás, quando a ideia era introduzir os verdadeiros carros franceses depois que os atuais, projetos da romena Dacia, atingissem o volume de produção desejado.
Bem, os carros romenos (Logan, Sandero e Duster) não conseguiram encher a fábrica de São José dos Pinhais. Mas foi com eles que a Renault chegou ao 4º lugar no mercado brasileiro. Por isso, mesmo com a primeira etapa não totalmente cumprida, o jeito é iniciar a segunda etapa sem abrir mão dos carros romenos, porém com mais itens e conceitos da França, como o motor 1.3 turbo do novo Captur.
Se tudo der certo, a partir de 2025, a Renault pode voltar a sonhar com carros legitimamente franceses para o mercado brasileiro. Antes, como já disse Luca de Meo, ressuscitar é preciso.
Sergio Quintanilha é editor-chefe do site Guia do Carro. Trabalhou nas revistas Quatro Rodas, Carro, Carro Hoje, Motor Quatro e Motor Show. Atua na cobertura do setor automotivo desde 1989 e atualmente desenvolve uma tese de doutorado na USP sobre as transformações no significado do automóvel. Twitter: @QuintaSergio