Bilheteria, naming rights, shows, eventos, camarotes, restaurantes, projetos de sócio-torcedor, uma fatia generosa da verba publicitária. O mercado esportivo mundial movimenta US$ 50 bilhões por ano só com eventos em arenas e complexos esportivos.

As cifras não incluem direitos de transmissão nem os anunciantes dos canais. A Copa do Mundo da Rússia teve audiência acumulada de 3,5 bilhões de espectadores. O Superbowl de 2019 foi visto por 98,8 milhões de americanos.

O Brasil, segundo a PNAD (IBGE), tem 71,7 milhões de domicílios e ao menos uma TV em 96,4% deles. Já pesquisa da Ipsos detectou que 74% têm interesse por esporte. Dos fãs de futebol, apenas um quarto vai a estádios.

É esse contingente imenso de pessoas a ser disputado em outra dura batalha da guerra do streaming.

O público sempre acompanhou seu time ao vivo no local ou pela TV (aberta ou a cabo). Assistir a eventos esportivos em tempo real faz mais sentido. Por isso, representam o último bastião do conceito de grade para a TV aberta e um dos pilares de sustentação econômica da TV por assinatura.

A migração dos esportes para o streaming erode o maior valor da TV a cabo para assinantes e anunciantes, conforme atesta um relatório da Business Insider.

Estudo do Leichtman Research Group Connected and 4K TVs 2020 apurou que 80% das residências americanas possuem ao menos um dispositivo conectado à internet – smartTVs, Chromecasts, Apple TV, consoles de games, etc.

Mais importante: 40% dos adultos assistiram TV por um dispositivo conectado. Há quatro anos, o percentual era de 19%. Ou seja, 2020 ficará marcado como o ano em que o streaming ultrapassou a TV a cabo em número de contas registradas no mundo, atingindo 1,1 bilhão. A tendência vale para a América Latina também.

As TVs a cabo se entrincheiravam nos eventos esportivos para estancar o sangramento de assinantes.

As TVs a cabo se entrincheiravam nos eventos esportivos para estancar o sangramento de assinantes

As grandes ligas esportivas mundo afora sempre seguiram a mesma lógica. Do Brasileirão ao críquete na Índia, os live events na TV aberta buscam audiência massiva para atrair anunciantes, que sustentam o modelo econômico.

Se a audiência muda de hábito e migra para o streaming, a tendência é a receita ir junto. Surgiram então os aplicativos agregadores de conteúdo, como o da startup DAZN e o da ESPN.

Ligas com governança transparente e gestão profissionalizada, como as dos EUA e as maiores do futebol europeu, têm controle dos direitos de captação, imagem e transmissão, e podem lançar um serviço D2C (Direct to Consumer).

A partir do momento em que as ligas têm liberdade para determinar os eventos e o fã escolhe ver ao vivo ou por demanda, o conceito de grade de televisão perde o sentido.

Na Índia, a Disney resolveu patrocinar a liga de críquete, o esporte mais popular do país, para exibir os jogos nas plataformas de streaming. Acordo parecido fez a Amazon com a Premier League britânica.

Um relatório da Enders estimou em cerca de 2 milhões de espectadores simultâneos na primeira cobertura em dezembro de 2019, quando a gigante do varejo online detectou o maior pico de inscrições ao serviço Prime na história no Reino Unido.

Arranjos assim rompem com o ecossistema dos esportes. Clubes e ligas vão acabar migrando para o novo modelo, porque será lá que a verba publicitária vai estar.

Este movimento criará a indústria do AVOD (Advertising VoD), que é o modelo da TV aberta, agregando diferenciais do mundo digital, como o aspecto analítico, a mídia de performance, entre outros.

Não à toa, o Grupo Globo, parceiro preferencial do esporte na TV aberta e por assinatura brasileiras, move-se rapidamente para se adaptar, enriquecendo a oferta de conteúdo esportivo em suas plataformas on-demand como o Globo Play (através do conteúdo linear da TV aberta) e o GloboSat Play e Premiere Play.

O Grupo Globo move-se rapidamente para se adaptar, enriquecendo a oferta de conteúdo esportivo em suas plataformas on-demand como o Globo Play

A empresa caminha para se tornar uma media tech company, em que um dos pilares é o portal Globo Ads, para disputar o bolo publicitário com empresas nativas digitais, vendendo como vantagem sua capilaridade e alcance de 100 milhões de consumidores.

Covid entra em campo

A pandemia causou um solavanco extra nesse quadro, com a interrupção das competições por 90 dias. Quase todo mundo saiu perdendo.

A DAZN era uma startup pronta para crescer muito. Sem ter o que exibir, de acordo com o Financial Times, o dono da empresa, Len Blavatnik, está procurando opções para atravessar a turbulência.

As ligas estão negociando com patrocinadores a devolução de dinheiro em função dos jogos adiados. A Premier League fez um acordo para adiar a restituição de £ 330 milhões, mesmo com a retomada do calendário.

A falta de eventos esportivos criou chance real de crescimento para os e-sports. O SporTV criou o 'FC: Futebol de Casa', torneio de futebol on-line com diversos jogadores da Série A do Brasileirão. A Fórmula 1 realizou GPs virtuais nas datas dos originais, com pilotos da categoria competindo com gamers.

A falta de eventos esportivos criou chance real de crescimento para os e-sports

No Brasil, a audiência dos e-sports cresceu 20% no ano passado, atingindo a marca de 21,2 milhões de espectadores. É a terceira maior audiência no mundo, atrás de China e EUA, com receita de R$ 1,5 bilhão por ano.

Em termos globais, de acordo com pesquisa da Newzoo, até 2022, a audiência mundial de e-sports deve chegar a 645 milhões de pessoas.

A Amazon está bem posicionada nesta frente também por ser dona do Twitch, canal que exibe competições de e-sports e vai mostrar a Premier League, criando via chat um "ambiente similar a um estádio".

Ao monetizar as ligas de forma mais ampla, a Amazon aumenta seu poder de negociação.

O bolso fundo

Mas cabe um alerta. O mercado de streaming conquistou consumidores pela vantagem econômica. O preço das assinaturas sempre foi uma fração da tarifa mensal de um pacote de TV a cabo.

Num mundo “appetizado”, o bolso do consumidor vai reclamar. Pesquisa realizada em 2019 pela consultoria Deltatre concluiu que os fãs de esporte gastam em serviços streaming por mês, em média, cinco vezes a tarifa mensal da Netflix.

Os pacotes nos EUA são muito variados e o preço final depende de quais esportes você quer. Note: com o tempo, o modelo "all you can eat" das TVs a cabo terá de ser trocado por um cardápio mais criterioso ou o modelo AVOD, do YouTube.

Para as TVs abertas, a chance de voltar a ser o principal catalisador de negócios e audiência é o ATSC 3.0 ou NextGen TV.

A NextGen TV torna a TV aberta capaz de oferecer internet banda larga de graça ou a preços módicos, invadindo a praia das operadoras

O novo padrão da TV americana começou em maio por quatro estações em Las Vegas. Além da evolução de som e imagem, a NextGen TV torna a TV aberta capaz de oferecer internet banda larga de graça ou a preços módicos, invadindo a praia das operadoras, que, por sua vez, rumam para o padrão 5G de telefonia, que é banda larga.

Num futuro próximo, poderemos ter operadoras distribuindo conteúdo streaming nas diversas telas e TVs abertas com internet banda larga.

Os próximos anos serão cheios de novidades para os fãs de esporte e a TV a cabo pode ficar num beco sem saída. Aonde isso vai dar? Hoje só tenho apostas de quem poderá vencer neste novo mundo. Quais são as suas?

Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet, como Netflix, Microsoft, Vivo, Mastercard, Nokia e Hewlett Packard.