Em 2010, o filme “A Rede Social” expôs um episódio embaraçoso dos primórdios do Facebook, atualmente Meta: a jogada de Mark Zuckerberg para tirar o brasileiro Eduardo Saverin da companhia, ao negar que ele fosse um dos fundadores da rede social. O caso é emblemático dentro do universo das startups, que eventualmente apresentam disputas sobre o peso da participação das pessoas nas origens das empresas.

Agora, passadas quase quase duas décadas desse imbróglio, um caso parecido, ainda que de proporções menores, começa a se desenrolar no Brasil, envolvendo o Rei do Pitaco, um dos maiores fantasy games de futebol do País, que conta com “pesos-pesados” em sua base de investidores, como Kaszek, Globo Ventures e DST Global, e que já levantou quase US$ 40 milhões.

Em processo ajuizado na quinta-feira, 11 de abril, no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), e obtido pelo NeoFeed, Michel Rozenberg Zelazny acusa Mateus Dantas, CEO e cofundador da empresa, de tomar a ideia do fantasy game que trabalharam juntos e abrir uma outra sociedade, a MMD Tecnologia, Entretenimento e Marketing, sem a sua participação. O processo não é movido contra o Rei do Pitaco, nem seus investidores.

Segundo os advogados de Zelazny, do escritório Champs Law, Dantas “enriqueceu ilicitamente às custas da exploração desautorizada de um patrimônio que não era de sua titularidade exclusiva”. Eles dizem que seu cliente é o “verdadeiro idealizador, criador e desenvolvedor do fantasy game”, mas que acabou alijado por Dantas da sociedade criada para operar o jogo, numa “traição indecorosa” a Zelazny.

No processo, Zelazny pede que seja declarada a existência e a validade da sociedade que ele supostamente tinha com Dantas. Ele pede ainda que Dantas seja condenado a restituí-lo pelo “enriquecimento ilícito decorrente da utilização indevida do patrimônio especial da sociedade em comum” entre as partes, além de condenado em R$ 30 mil por danos morais.

Procurado pelo NeoFeed, Dantas afirm0u, por meio de sua assessoria de imprensa, que não foi notificado e que "refuta integralmente as alegações e a pretensão suscitada". Em nota, ele disse ainda que, entre 2015 e início de 2017, ele e Zelazny demonstraram interesse em engajar um projeto "que não evoluiu ou se concretizou à época dos fatos relatados".

Ele afirma ainda que chegou a contatar Zelazny para que participasse dessa nova empreitada, mas que ele "não demonstrou qualquer interesse no projeto" - a íntegra do posicionamento dele pode ser lida no final da reportagem.

O Rei do Pitaco informou que não iria se manifestar sobre o caso.

História

Segundo a história pública, o Rei do Pitaco foi fundado em 2019 por Dantas e Kiko Augusto, dois programadores aficionados por esportes. No jogo, os usuários montam escalações com jogadores de campeonatos profissionais de futebol e pontuam de acordo com o desempenho estatístico desses atletas em partidas da vida real. Ao término das partidas, os usuários que somarem mais pontos recebem prêmios em dinheiro.

A empresa começou pequena e foi crescendo, com o app contabilizando mais de 14 milhões de downloads e tendo distribuído mais de R$ 210 milhões em prêmios para mais de 565 mil usuários até o momento, segundo dados no site do Rei do Pitaco. A companhia não divulga informações sobre faturamento.

O sucesso atraiu nomes pesados para a base de investidores. Desde sua fundação, o Rei do Pitaco realizou quatro captações, totalizando US$ 38,2 milhões, segundo dados do site CrunchBase, contando com um total de 12 investidores. O mais recente aporte ocorreu em 2022 quando levantou US$ 32 milhões.

Já o processo movido por Zelazny contra Dantas aponta para uma outra história sobre a criação do Rei do Pitaco. Formado em ciência da computação pela Universidade de Columbia e desde 2017 trabalhando no Meta, Zelazny conheceu Dantas em meados de 2010, em Campinas, interior de São Paulo, de acordo com o processo, e mantiveram uma relação próxima, tendo até participado, juntos, de uma olimpíada de informática na Austrália, em 2014.

Em julho de 2015, segundo o processo, ambos passaram a falar da possibilidade de criarem um negócio juntos. De acordo com mensagens trocadas entre ambos, anexadas à ação, Dantas fala sobre uma startup de entregas de comida. Zelazny, por sua vez, disse que pensava em um outro tipo de empreendimento, voltado a jogos online, um “esquema parecido com o Cartola”, em referência ao fantasy game do Grupo Globo, mas envolvendo dinheiro.

É nesta troca de mensagens, segundo os advogados, que Zelazny idealizou o Rei do Pitaco e que Dantas teria gostado do projeto, vendo bom retorno financeiro.

O processo diz que Zelazny foi o responsável por nomear o projeto como Rei do Pitaco, criar o protótipo do jogo, com o “passo a passo” para a utilização por parte do usuário, além de ter trabalhado para encontrar investidores, feito pesquisas de mercado e revisado os trabalhos feitos por Dantas no jogo. Os advogados anexaram uma apresentação a investidores em que Zelazny aparece como fundador e CEO do Rei do Pitaco e Dantas é creditado como fundador e CTO.

Os trabalhos para estabelecer as bases do Rei do Pitaco teriam continuado em 2016, mas em 2017, segundo o processo, o “projeto sofreu frustrações em relação a potenciais investidores e promotores da plataforma” e que, por volta de setembro, Zelazny e Dantas pausaram o projeto, “diminuindo o grau de interação”. No entanto, segundo os advogados, Zelazny “jamais chegou a manifestar vontade, expressa ou implícita, de sair do projeto”.

Em meados de maio de 2019, Zelazny teria sido procurado por Dantas, que manifestou o interesse em retomar o projeto. O processo diz que Zelazny tentou discutir o assunto, mas a conversa não chegou a ocorrer num primeiro momento, com Dantas se esquivando. Ao tomar conhecimento de que havia sido “sorrateiramente escanteado” do projeto, segundo o processo, Zelazny tentou fazer contato até que conseguiu conversar com Dantas, em outubro de 2020.

O processo aponta que a ligação, que foi gravada, não chegou a um acordo, com os advogados de Zelazny dizendo que Dantas foi “visivelmente orientado” por advogados, sendo evasivo e negando que Zelazny havia participado do negócio. Para os advogados, Dantas “não pretendia resolver o impasse com o autor [Zelazny], a sua intenção era nitidamente sondar qual era a pretensão de Michel ao fazer o contato com ele”.

Em junho de 2021, Dantas formalizou a constituição de uma pessoa jurídica, a MMD Tecnologia, Entretenimento e Marketing, em conjunto com outro parceiro, “às escondidas” de Zelazny. Segundo o processo, a nova empresa incorporou o conceito da plataforma, o nome de fantasia Rei do Pitaco e demais materiais que teriam sido produzidos em parceria com Zelazny.

Antes disso, não havia sido constituído um contrato social entre Zelazny e Dantas a respeito do projeto. O processo aponta que Dantas demonstrou interesse a Zelazny de registrar o contrato social do Rei do Pitaco em 2017.

Os advogados contam que situação produziu um abalo emocional em Zelazny, que passou por tratamento médico. No início de 2022, ele buscou o escritório Champs Law para tratar do assunto, que começou a estudar o assunto.

Inicialmente, os advogados encaminharam uma notificação extrajudicial a Dantas e ao Rei do Pitaco, em novembro de 2022, pedindo o reconhecimento de Zelazny como cofundador do fantasy game, e todas as consequências jurídicas e financeiras decorrentes do reconhecimento, mas ambos negaram a solicitação, dizendo que ele não era cofundador.

O processo aponta ainda que os advogados encaminharam pedido aos investidores do Rei do Pitaco, que tentaram estabelecer bases para uma composição, mas as partes não chegaram a um consenso.

Consequências

Procurado pelo NeoFeed, Guilherme Champs, do Champs Law, diz que o processo se baseia numa tese estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2018, da possibilidade da formação de sociedades em comum, mesmo que não registradas formalmente, diante do trabalho que Zelazny teve.

“O tradicional é fazer o contrato social, registrar na Junta Comercial, e dar publicidade daquilo. Mas existe uma pré-sociedade, reconhecida pelo Código Civil, essa sociedade em comum, que nada mais é que os atos preparatórios para constituir uma sociedade”, diz ele.

“O STJ reconhece que há indícios de uma sociedade, que forma um patrimônio em comum, e que quem explora isso e não dá a devida participação ao outro, que participou do empreendimento, tem que indenizar esse outro, que o STJ chama de lucro da intervenção”, complementa.

Segundo ele, caso a Justiça entenda que havia uma sociedade entre Zelazny e Dantas, será apurado quanto Dantas potencialmente se enriqueceu às custas do patrimônio em comum. Ele diz que, neste primeiro momento, o objetivo não é que Zelazny retorne à sociedade, mas quantificar as perdas dele com os supostos atos de Dantas.

“O que será preciso entender é quanto de equity o Mateus detém, para apurar que, em tese, metade teria de ser conferido a Michel”, afirma. “Se Mateus colocou algum valor no bolso, numa venda secundária, queremos entender qual é esse valor e pleitear que metade seria justo ao Michel.”

Questionado sobre a possibilidade de pedir a retirada do site do ar, Champs diz que “não ignora medidas mais severas caso a gente entenda necessário”, mas que este não é o objetivo neste momento.

“Nosso objetivo não é atrapalhar o andamento da companhia ou gerar um prejuízo para empresa. Estamos movendo um processo em detrimento ao Mateus”, diz. “Neste momento não consideramos uma medida contra a empresa.”

A seguir, confira a íntegra do posicionamento de Mateus Dantas:

Mateus Dantas, junto com Kiko Augusto - dupla com passagens por empresas como Facebook, Google e Intel - fundaram a startup Rei do Pitaco em 2019. Anteriormente a este período, cabe esclarecer, que entre 2015 e início de 2017, Matheus e Michel demonstraram interesse em engajar em um projeto que não evoluiu ou se concretizou à época dos fatos relatados.

É também oportuno pontuar que, de acordo com informações públicas e pesquisáveis em redes sociais, no início de 2017, Michel abandonou completamente o ainda incipiente projeto de Mateus e optou por seguir sua carreira em um grande conglomerado de tecnologia, pois visava garantir sua estabilidade financeira.

Mateus Dantas desenvolveu por meses muitos projetos e estratégias a fim de propor no mercado competitivo uma startup de Fantasy Sports, que significa atuar como uma empresa jovem e inovadora, focada em criar um modelo de negócio escalável, oferecendo soluções para desafios específicos. A ideia de Fantasy no Brasil surgiu em 2005 e atualmente, de acordo com dados do setor, há pouco mais de 30 empresas atuantes na área.

Mateus Dantas e Kiko Augusto deram início em 2019 a uma nova configuração do projeto Rei do Pitaco. Na ocasião, Dantas chegou a contactar Michel para que participasse dessa nova empreitada. Conforme consta nos registros de notificação extrajudicial enviada em novembro de 2022 - os quais as partes têm acesso na íntegra e sem nenhum recorte ou edição - Michel não demonstrou qualquer interesse no projeto.

Por fim, causa estranheza o fato de que, apesar de se dizer “cofundador” e “idealizador” do projeto do Rei do Pitaco, Michel tenha aguardado por anos para pleitear qualquer direito que, porventura, entenda ter em relação à marca.

Mateus Dantas refuta integralmente as alegações e a pretensão suscitada. Caso a infundada conduta persista e venha a causar qualquer prejuízo ou constrangimento indevido, serão imediatamente adotadas as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.