Fundada em 2017, a Voltz começou a ganhar tração, de fato, com suas scooters e motos elétricas, na pandemia. Com vendas 100% online, alimentadas por redes sociais e grupos de WhatsApp, a startup pernambucana chegou a registrar, na época, números próximos aos de gigantes como Honda e Yamaha.

O modelo lhe rendeu o apelido de “Tesla brasileira” e atraiu, em maio de 2021, um aporte de R$ 100 milhões da Creditas e do UVC, fundo de corporate venture capital do grupo Ultra. Na rodada, a instalação de uma fábrica em Manaus (AM) foi destacada como um dos principais destinos dos recursos.

Em maio deste ano, porém, uma ação de despejo de R$ 2,8 milhões na fábrica foi o ponto de partida para que outros problemas, como o atraso crescente nas entregas, viessem à tona. Nessa trilha, a Voltz foi do burburinho favorável do digital para a esfera judicial, onde, hoje, é alvo de muitos processos.

O NeoFeed conversou com parceiros que mantinham showrooms da marca para entender o percurso que levou a Voltz a esse "curto-circuito". E com Renato Villar, fundador e CEO da startup, que também falou sobre alguns dos caminhos que estão sendo traçados para tentar mudar o rumo da operação.

“Fizemos um grande trabalho em lançar a marca e escalar um negócio que não é trivial”, diz Villar, ao NeoFeed. “Mas nosso maior erro talvez tenha sido crescer tão rápido. Em três anos, fomos de 100 para 2,4 mil motos, e de um time de 40 para 400 pessoas.” Há quem concorde com parte dessa premissa.

“A Voltz vendeu muito bem a ideia para clientes e parceiros, mas o amadorismo falou mais alto”, diz um dos ex-parceiros da startup, do interior de São Paulo. “Eles quiseram abraçar o mundo, escalar muito rápido e deram o passo maior do que a perna. Acabaram perdendo o controle e arruinaram a empresa.”

Impactado por uma ação de marketing no Instagram, esse parceiro foi um dos primeiros a comprar a ideia. Desde outubro de 2020, sua loja somou 500 reservas de motos: 178 foram entregues e 129 canceladas, devido aos atrasos. O restante seguia pendente quando a unidade fechou suas portas, no início desse ano.

O prejuízo não ficou restrito aos consumidores. A Voltz pagou apenas uma das cinco parcelas acordadas com o parceiro em questão na rescisão. A conta incluía, entre outros números, comissões não pagas das vendas efetivadas. “Eu não sei com quem falar. Todos os meus contatos saíram da empresa”, diz ele.

No modelo da startup, os showrooms são usados para dar visibilidade à marca e para que o consumidor conheça o produto e faça test drives das motos, cujos preços vão de R$ 15,9 mil  a R$ 24,9 mil. O investimento inicial, dependendo do formato e tamanho da loja, pode variar entre R$ 80 mil e R$ 150 mil, levando-se em conta apenas a estrutura e as motos expostas.

Em seu auge, a Voltz chegou a ter pouco mais de 70 lojas, entre as próprias e de terceiros. Atualmente, essa base está em 51 unidades. Já o número de parceiros caiu de 50 para aproximadamente 30, segundo Villar.

Loja própria da Voltz, em São Paulo

Todos os parceiros ouvidos pelo NeoFeed foram atraídos pelo aporte e a chancela da Creditas e do UVC. Mas a rodada é apontada justamente como a virada para a busca de um crescimento desenfreado e desordenado que, ao mesmo tempo, turbinou gargalos que já eram crônicos na operação.

“A Voltz dizia que o dinheiro era para montar a fábrica e que, com ela, compraria um estoque grande de componentes e o jogo mudaria”, diz outro parceiro. “Mas, na verdade, queimou muito caixa com abertura de lojas, ampliação da equipe e em marketing, enquanto os prazos das entregas só cresciam.”

No caso desse parceiro, também do interior de São Paulo, as vendas não chegaram a 70 motos, de um total de 250 reservas, em pouco mais de dois anos de operação. Ele calcula que seu prejuízo esteja próximo de R$ 130 mil.

Um dos projetos desenvolvidos no período envolveu o iFood. Além do acesso a um modelo mais barato da Voltz, os entregadores do app deram a partida no piloto para testar um plano de assinaturas de baterias. Mas, com a falta desses componentes, a iniciativa foi alvo de protestos em lojas por parte desses profissionais.

Fábrica da discórdia?

Quando a Voltz anunciou a captação de recursos, seu prazo médio de entregas era de 11 semanas e havia 2 mil clientes à espera de suas motos. E, apesar de ser propagada como o principal motor para zerar essa fila, a fábrica é apontada como outro grande ponto de discórdia pelos parceiros.

Segundo as fontes, a startup chegou a prometer um evento com os parceiros no local – que nunca aconteceu – e se limitava a enviar vídeos, fotos e slides sobre a unidade. Os prazos das entregas, por sua vez, passaram de semanas para meses. E seguiam crescendo.

“A empresa mostrava maravilhas da produção, o que tinha em estoque e o que seria liberado na alfândega e na China”, conta outro parceiro. “Só que as motos nunca chegavam. A fábrica nunca entrou totalmente em operação. Eles ergueram o projeto, mas não tinham recursos para comprar os kits.”

Os gargalos chegaram à assistência técnica. “Você abria um chamado e não tinha peça. Tive clientes que precisaram importar diretamente da China, pelo AliExpress”, afirma uma das fontes. “E a Voltz começou a tirar peças das poucas motos em estoque. Fizeram um verdadeiro desmanche para tentar resolver.”

Os parceiros dizem que, a partir daí, a empresa recorria a uma alegação diferente a cada reunião. Apesar dessa mudança constante, um tema, no entanto, era recorrente no discurso: boa parte da culpa era atribuída a uma segunda rodada não concretizada pelos investidores.

“Em mais de uma oportunidade, falaram que o aporte total seria de R$ 300 milhões”, diz um dos parceiros. “Mas sempre frisavam que isso dependeria das vendas. A sensação era de que eles queriam jogar muitos pedidos para dentro e inflar o valuation. E sem condições de entregar o que vendiam.”

Outro parceiro, da região Sul, acrescenta que a percepção é de que os investidores pisaram no freio ao se depararem com os números reais da operação. E, nessa conta, sobram, inclusive, ressalvas para o grupo Ultra e a Creditas.

“Você pode ter um milhão de reservas, mas essas motos não estão nas ruas. E o que choca é como essas empresas não acompanharam isso de perto”, diz. Ele ressalta que, no início do ano, a Creditas nomeou dois executivos para um turnaround na Voltz. Mas que a dupla “sumiu”, sem explicações, logo depois.

Outra fonte de mercado diz que a rápida passagem desses executivos foi encerrada a partir da constatação de que a gestão era muito centrada em Villar. E que não haveria espaço nem autonomia para que eles liderassem qualquer iniciativa de reestruturação.

O NeoFeed também apurou que a Creditas e o UVC não chegaram a ser acionistas da Voltz, dado que a captação foi feita via dívida conversível. O acordo inicial previa, de fato, uma segunda tranche, também de R$ 100 milhões. Mas, nos dois casos, os investidores decidiram não converter os valores em ações.

“Havia muitas dúvidas sobre a gestão e a falta de controles da empresa, especialmente nas finanças”, diz uma pessoa a par das negociações. “A Creditas e o UVC entenderam que havia um problema de confiança na operação e comunicaram que não estavam confortáveis em seguir com o processo.”

Procurado, o UVC ressaltou em nota que nunca teve participação na gestão da Voltz. E que, como credor da empresa, acompanha o desdobramento dos atos da administração. Já a Creditas não retornou o pedido de entrevista até o fechamento dessa reportagem.

Villa, por sua vez, deu sua versão para explicar o motivo dessa relação não ter evoluído para um outro patamar. “O mundo virou. Basta ver os resultados e os números da Creditas”, diz. “Fazia sentido eles investirem na Voltz ou colocarem na própria operação, que também está precisando de caixa?”.

Balas de prata

A despeito dessa visão, Villar e a Voltz tinham sua própria crise de liquidez para lidar. E, segundo os parceiros, uma das decisões da empresa foi reforçar um mantra que, desde o início da operação, já guiava os passos e orientações da startup.

“Sobre as reservas e vendas, eles sempre falaram que precisávamos dar o tiro e, depois, correr atrás da bala. E começaram a cobrar ainda mais nessa direção”, afirma um desses parceiros. “O problema é que enquanto mais corríamos atrás, mais levávamos ‘bala’ dos clientes que não recebiam essas motos.”

Esse tiroteio afetou, claro, as vendas da Voltz. Segundo a Fenabrave, a empresa vendeu 1.629 motos de janeiro a setembro desse ano, queda de 55,6% sobre igual período, em 2022. A startup chegou a figurar no top 5 em alguns meses da pandemia. Mas agora amarga o 13º lugar, com um market share de 0,14%.

Renato Villar, fundador e CEO da Voltz

Villar traz outros números que ilustram essa derrocada e o contexto atual da operação. Em 2022, a Voltz registrou 24 mil reservas, das quais, 6 mil foram convertidas efetivamente em vendas. Outras 10 mil foram canceladas.

Na evolução desses números, hoje, a empresa tem 1,5 mil motos pagas a serem entregues e um backlog de reservas de 9,7 mil clientes. O prazo atual de entregas varia de 60 a 90 dias, ante os 180 dias no que ele considera o pico da crise, entre o fim de 2021 e o início de 2022.

“Estamos voltando”, afirma Villar. Como parte de uma reorganização, a empresa “cortou tudo o que tinha que cortar” em despesas. Entre as principais medidas tomadas nesse ano figuram a redução do quadro para 100 profissionais e o adiamento de projetos como a abertura de 30 lojas pop-up.

Ele afirma que a fábrica está em operação, produzindo de 60 a 70 motos por dia, bem abaixo da sua capacidade. Mas se na época da captação a unidade era vendida como o tiro certeiro da Voltz, agora, a venda dessa operação é uma das novas balas de prata da startup.

“Por tudo o que passamos nesses últimos anos, vimos que apertar parafuso e botar plástico não gera valor”, aponta. “Produzir 500, 600 motos por mês em uma fábrica com capacidade de 200 mil por ano é uma ociosidade absurda. Então, a venda está na mesa.”

Segundo o CEO, outro projeto em negociação é uma parceria com um player global de carros elétricos, que envolveria, inicialmente, transferência de tecnologias entre as duas empresas. E que pode prever, em uma etapa posterior, que a operação da fábrica seja assumida por essa companhia.

“Também temos falado com alguns investidores em busca de uma nova captação”, diz. “Mas, além de o mercado estar mais restrito, tudo o que foi divulgado sobre a nossa operação dificulta esse processo. Temos que bater na porta duas, três, quatro vezes para sermos escutados.”

Esse não é, porém, o único público a ser convencido de que a Voltz engatou outra marcha. Há um grande passivo jurídico em todo o País. Só em São Paulo, a startup é citada em mais de 450 processos, em um universo amplo que cobre desde ações de despejo até práticas abusivas e danos materiais.

“Eles eram muito bons em marketing e conseguiram conquistar clientes que amavam e defendiam a marca”, conta um dos ex-parceiros. “Mas, hoje, muitos desses consumidores que eram verdadeiros fãs, têm ódio mortal e não querem nem ouvir falar o nome da Voltz.”

Outro parceiro vê pouca margem para uma virada da startup. “Só um milagre salva a Voltz”, afirma. “É uma pena, porque o volume de reservas mostra que há público para a categoria. Mas o que eles fizeram acabou queimando o mercado, que ainda é novo, e não apenas a empresa.”

Na contramão dessa visão, Villar recorre a outro discurso. “Temos muitos clientes que são ‘haters lovers” da Voltz”, afirma. “Mas nós já chegamos ao fundo do poço. E, no fim das contas, a marca ainda é forte. Podemos nos recuperar.”