O governo conquistou sua maior vitória recente ao aprovar a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. Mas, para bancar esse benefício, criou a tributação mínima de 10% sobre a alta renda. Essa matemática política "simples" produziu como efeito colateral uma corrida das empresas para antecipar dividendos e garantir a isenção do estoque até 2025 e uma nova lógica para aplicação dos recursos, um movimento que já está mudando a gestão do patrimônio no País.
Com relatoria de Renan Calheiros (MDB-AL), o projeto de lei que propõe alterações na legislação do imposto de renda da pessoa física para ampliar a faixa de isenção e reduzir a carga tributária sobre rendas baixas foi sancionado pelo presidente Lula no fim de novembro. A contrapartida é uma cobrança mensal sobre dividendos acima de R$ 50 mil por pessoa física e um ajuste anual que assegura a alíquota mínima de 10% sobre rendimentos acima de R$ 600 mil.
As novas regras passam a valer em 2026 e atingem desde grandes companhias listadas na B3 até pequenos negócios, além de profissionais liberais como médicos, dentistas e advogados. Quem trabalha no regime CLT ou vive de aplicações ficou de fora.
“Empresários e profissionais liberais enxergam isso como bitributação. Eles já pagam muito na pessoa jurídica. E agora vêm um imposto adicional”, diz Limerci Cavariani, sócio da WHG responsável por planejamento patrimonial. “A chave agora é entender como a legislação permite otimizar essa carga.”
O NeoFeed conversou com uma dezena de family offices e escritórios de advocacia para entender como as famílias empresárias estão reagindo à nova lei. O tema dominante do momento é como garantir que os lucros acumulados até 2025 fiquem de fora da nova regra.
Isso porque a lei determina que lucros apurados até este ano ficam isentos desde que a distribuição seja aprovada até 31 de dezembro e seja efetivamente paga até 2028. O prazo apertado e inconsistências com outras normas contábeis provocaram reações.
O Sescon-SP, sindicato que reúne empresas de serviços contábeis no estado de São Paulo, por exemplo, entrou com mandado de segurança contra o texto. O argumento é a incompatibilidade por exigir que empresas apurem resultados e aprovem distribuições antes mesmo do exercício fiscal terminar.
“Esse projeto traz mudanças muito profundas e passou de forma apressada para valer já em 2026. A qualidade não condiz com o tempo em tramitação. Foi aprovado com a promessa, e não a garantia, de que ajustes viriam depois. Isso não faz sentido”, afirma Hermano Barbosa, sócio de tributário da banca BMA Advogados.
Uma tentativa desse acerto veio na semana passada, quando a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado incluiu em outro projeto (o PL 5.473) a ampliação do prazo de apuração até abril de 2026. A mudança pode flexibilizar a transição, mas ainda depende de aprovação do Congresso Nacional. Não parece haver tempo hábil.
Na prática, os advogados têm recomendado apurar e distribuir tudo ainda em 2025, o que poucas empresas conseguem por falta de caixa; ou aprovar agora o pagamento de dividendos para ocorrer até 2028, ganhando tempo para gerar recursos.
Um grande movimento nesse sentido foi feito pela Weg. A companhia anunciou em 28 de novembro um pagamento de proventos de quase R$ 1,9 bilhão, sendo R$ 1,43 bilhão em dividendos e o restante em juros sobre o capital próprio (JCP).
Além disso, a fabricante de componentes industriais convocou uma assembleia para aprovar o pagamento de dividendos calculados sobre o saldo das reservas de lucros, no valor de R$ 5,2 bilhões, que serão pagos em três parcelas anuais, em agosto de 2026, 27 e 28.
A Weg foi transparente e disse que a proposta está em linha com a regra de transição da tributação sobre dividendos com base nas reservas de lucros acumulados em exercícios anteriores.
Assim como ela, Itaú Unibanco e Vale também usaram o caixa forte e a governança sólida como previsibilidade financeira para se posicionar antes da virada de regime. De acordo com o BTG Pactual, as empresas listadas na B3 anunciaram cerca de R$ 68 bilhões em proventos desde novembro, incluindo R$ 35 bilhões de dividendos extraordinários.
Alternativas à falta de caixa
Para quem acredita que não terá liquidez por estar comprometido com outras obrigações, como investimentos na operação, os advogados estão basicamente dando duas opções, usando como base outros entendimentos jurídicos.
O primeiro é endividar-se para distribuir dividendos. Por mais ilógico que pareça, os juros altos podem ser tratados como despesas operacionais e dedutíveis no lucro real. O risco, neste caso, é a Receita Federal rejeitar a dedutibilidade.
“A Receita pode argumentar que não há finalidade operacional”, afirma Lucas Babo, advogado da área tributária e planejamento patrimonial do Cescon Barrieu. “Mas há precedentes no Carf que reconhecem o pagamento ao sócio como atividade inerente à empresa. Portanto, tem que ser dedutível.”
O segundo é transformar agora o lucro em capital social para, no futuro, reduzir e devolvê-lo para os sócios. De acordo com os especialistas, essa movimentação é legal, embora a Receita possa alegar simulação.
“A Receita Federal tem tido cada vez mais uma posição agressiva com interpretações de simulação e desvio de finalidade e há o receio de isso lá na frente ser considerado abusivo, podendo gerar dor de cabeça”, afirma José Dumont, head do family office solutions da Brainvest.
Para Alamy Candido, sócio-fundador do escritório Candido Martins, é normal que novas leis gerem dúvidas e é preciso esperar a normatização, o que deve acontecer no ano que vem. “Temos que crer na razoabilidade. Caso contrário, é se mobilizar judicialmente.”
Nova lógica a partir de 2026
Passada a disputa sobre dividendos antigos, surge a segunda variável que é como operar no novo regime e garantir eficiência tributária para os dividendos futuros.
Uma mudança sensível e que tem gerado debate é a retenção de 10% na fonte sobre qualquer lucro ou dividendo remetidos a acionistas ou quotistas no exterior. Em tese, existe a possibilidade de restituição desse imposto caso a empresa investida tenha sua renda tributada a uma alíquota efetiva de 34%. Na prática, são esperados poucos casos e mesmo para eles o procedimento para restituição ainda depende de regulamentação.
Para piorar, para muitos investidores estrangeiros o novo imposto será aumento de custo, sem possibilidade de creditamento no exterior. “EUA e os países da Europa, por exemplo, não farão a compensação do novo imposto de fonte brasileiro. Diminuirá a rentabilidade de seus investidores no Brasil, além de enfrentarem mais incertezas. Várias câmaras de comércio têm apontado esse efeito danoso e alertado para os riscos da oneração do capital internacional”, afirma Barbosa, do BMA.
Para os residentes, a lógica é outra. A lei prevê que dividendos acima de R$ 50 mil mensais (creditado à mesma pessoa física) sofrem retenção de 10%. Ou seja, quem recebeu R$ 55 mil no mês de março tem retido R$ 5,5 mil na fonte.
Caso os outros meses fiquem abaixo do teto, o contribuinte recebe uma restituição no imposto de renda do ano seguinte, sem nenhuma correção monetária.
Há, também, uma alíquota máxima de 34% para as retenções somadas da pessoa física e da jurídica no ano, sendo aplicado um redutor caso a alíquota extrapole isso. O texto prevê a devolução do que foi retido mês a mês na fonte no ano seguinte, como restituição do imposto de renda, sem correção.
“Os clientes terão que tomar muito cuidado com o fluxo de caixa, porque a retenção é muito penalizadora”, diz Roberto Freitas, head da área de wealth planning da G5 Partners.
“Na prática, o redutor não funciona porque quase nenhuma empresa chega a essa alíquota de 34%, e por isso mesmo existem regimes diferentes para incentivar empresas menores, como o simples nacional”, complementa.
Como fica o portfólio financeiro?
A lei também prevê um imposto mínimo anual sobre a renda, abrangendo não somente dividendos, como aluguéis e rendimentos financeiros (exceto isentos e FIIs com mais de 100 cotistas). A regra vale para rendimentos anuais totais acima de R$ 600 mil, progressiva até 10% quando chega a R$ 1,2 milhão por ano. Ou seja, se o portfólio de rendimentos total não tiver uma alíquota efetiva de 10%, será cobrado o percentual restante.
A pedido do NeoFeed, a WHG fez simulações mostrando que, dependendo da composição da carteira de investimentos, títulos tributáveis passam a ser mais eficientes que isentos quando há dedução possível devido à retenção de impostos. “Eficiência tributária pode vir antes da rentabilidade por si só. Será preciso rever os portfólios”, diz Cavariani, da WHG.
Na simulação, dois investidores recebem R$ 5 milhões em dividendos anuais, o que gera uma retenção de R$ 500 mil pela nova regra, para cada um deles. Porém, ambos têm aplicações financeiras de R$ 20 milhões com características tributárias diferentes.
O primeiro alocou esses R$ 20 milhões em títulos isentos, como LCI e LCA, com rendimento de 90% do CDI. Isso gera para ele uma rentabilidade líquida de R$ 2,34 milhões porque não há imposto de renda retido. Com isso, o único imposto retido será aquele do dividendo, o que no fim gera um total líquido de R$ 7,34 milhões.
Já o segundo investidor decidiu colocar seus R$ 20 milhões em CDBs, com rentabilidade de 100% do CDI. Como títulos bancários pagam 15% de imposto, ele terá R$ 390 mil retidos na fonte, gerando uma rentabilidade bruta de R$ 2,6 milhões.
Mas, com a nova regra, essa parcela que foi tributada em 15% - acima dos 10% mínimo - pode ser deduzida do imposto total. No fim, ele recebe os R$ 5 milhões de dividendos e o seu total líquido fica em R$ 7,34 milhões - exatamente como o investidor que aplicou em títulos isentos.
Da mesma maneira que o portfólio financeiro, uma análise da carteira imobiliária se faz necessária. Nos últimos anos, diversas famílias constituíram holdings imobiliárias para diminuir o imposto pago de 27,5% na pessoa física para cerca de 15% na pessoa jurídica. Agora, com a alíquota de 10% a mais, o imposto fica muito semelhante e talvez o custo dessas estruturas não faça mais sentido.
“Não há soluções padronizadas. Cada caso é um caso e é preciso fazer uma simulação com o patrimônio como um todo para entender onde estão ineficiências”, afirma Mari Emmanouilides, sócia da Galapagos Capital.
O que os family offices estão vendo é que a partir de agora a gestão patrimonial estará em simbiose com as decisões da empresa para que ela cumpra com o seu objetivo principal: maximizar os lucros dos acionistas.
“O wealth planning da família vai entrar diretamente nas empresas, não somente para sucessão. Estamos tendo várias reuniões com os CFOs das empresas e isso terá que ser uma constante”, diz Pedro Olmo, sócio responsável pela área de gestão patrimonial da Sten Multi Family Office.