Autores de um livro já clássico na ciência política, “Como as Democracias Morrem”, lançado em 2018 no Brasil pela Zahar, os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ganham, pela mesma editora, a tradução de seu mais novo livro sobre o tema: “Como Salvar a Democracia”.
Não faltam exemplos, no novo livro de Ziblatt e Levistky, de problemas ancestrais com esse regime, que, na definição de Winston Churchill, citando um pensador anônimo, “é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras que já foram tentadas”.
O livro aponta os obstáculos para proteger e garantir os avanços democráticos; dá indicações de como enfrentá-los; e mostra preocupação com a demora dos EUA em adotar aperfeiçoamentos já testados e aprovados em democracias estabelecidas, como o fim do colégio eleitoral e a criação de um tribunal ou comitê eleitoral apartidário.
A democracia a salvar, apontada no título, é a dos EUA, foco principal da obra. Muitas das propostas listadas no livro irão surpreender os que desconhecem os detalhes da máquina política e jurídica americana.
Os autores pedem, com urgência, medidas como eleições aos domingos e inscrição eleitoral automática, para garantir aos eleitores o exercício do voto. Condenam, ainda, o mandato vitalício dos juízes da Suprema Corte, que acusam de prejudicar a adaptação do sistema eleitoral a uma sociedade renovada e mais multicultural.
O país que explicitamente garante o direito a porte de armas pelo cidadão não tem, em seu aparato legal, uma garantia clara ao direito de voto – e essa ambiguidade dá espaço a uma coleção de artifícios para desestimular e até impedir que eleitores busquem as urnas contra o poder constituído, em âmbito federal ou estadual.
Com fartos relatos históricos de experiências democráticas e rupturas autoritárias em todo o mundo, Ziblatt e Levitsky desfazem o mito da Constituição americana como um texto “inatacável”, “cuidadosamente calibrado” e capaz de responder sem significativas alterações às demandas contemporâneas.
Os autores lembram como os fundadores da maior democracia do Ocidente foram obrigados a construir seu sistema em uma época sem modelos democráticos a seguir, e tiveram de fazer concessões à elite escravocrata e a dirigentes de Estados pouco populosos, que acabaram ganhando poder e representatividade desproporcional no sistema político dos EUA.
Parte do retrocesso político materializado no governo de Donald Trump e na recusa de seus aliados em reconhecer a derrota eleitoral é reflexo dessas falhas ainda presentes no aparato institucional dos Estados Unidos, mostram os autores.
O risco de retrocesso autoritário é uma marca da democracia americana, embora a sociedade seja cada vez mais progressista. Medidas tomadas para evitar uma espécie de ditadura da maioria, capaz de ameaçar direitos individuais, acabaram criando, nos EUA, um cipoal de regras “contramajoritárias” que permite a minorias tomar o poder e contrariar a vontade popular, afirmam Levitsky e Ziblatt.
“A maioria dos americanos cultiva valores amplamente inclusivos e abraça os princípios da democracia liberal e multirracial”, lembram os autores, citando pesquisas de opinião recentes. “Mas nossas instituições frustram essa maioria”, lamentam.
“A maioria dos americanos cultiva valores amplamente inclusivos e abraça os princípios da democracia liberal e multirracial. Mas nossas instituições frustram essa maioria”
Eles descrevem a maneira como movimentos sociais e líderes políticos comprometidos com a democracia fizeram avançar, pouco a pouco, as liberdades democráticas nos EUA.
Mas mostram como isso não se deu sem recuos até violentos, num país em que até meados do século passado ainda vacilava na discussão sobre maneiras legais de proibir linchamentos movidos pelo ódio racial, e tolerava ações terroristas de supremacistas brancos especialmente contra comunidades negras.
A edição brasileira traz uma introdução dos autores comparando as ameaças recentes contra a democracia capitaneadas por Trump, lá, e Jair Bolsonaro, aqui.
Na comparação, o Brasil é visto como um país que conseguiu reagir à ameaça de um líder populista autoritário, graças, principalmente, à rejeição aos projetos golpistas liderada por políticos tradicionais e ocupantes de postos estratégicos nas instituições nacionais.
O Brasil é visto como um país que conseguiu reagir à ameaça de um líder populista autoritário, graças, principalmente, à rejeição aos projetos golpistas liderada por políticos tradicionais
Já nos EUA, o partido republicano parece comandado por políticos classificados pelo cientista político Juan Linz de “semileais” à democracia, dispostos não só a tolerar como proteger e firmar alianças com líderes autoritários quando lhes parece conveniente. Levitsky e Ziblatt chegam a dizer que os republicanos teriam a ganhar se seguissem o exemplo da direita brasileira.
Embora a comparação, no livro, pareça minimizar o peso do bolsonarismo e a proximidade de políticos brasileiros com o ex-presidente, o Brasil, de fato, tornou Bolsonaro inelegível, abriram-se investigações, houve punição aos que invadiram as sedes dos três poderes e os políticos tradicionais condenaram os atos violentos de 8 de janeiro.
Nada mais diferente dos EUA, onde o establishment republicano isolou líderes que condenaram o levante contra o resultado das eleições, protege Trump até hoje de responsabilização por atos autoritários e acena com apoio a uma segunda candidatura dele à presidência.
Ainda que muitas das propostas apresentadas pelos autores se refiram a falhas características do sistema político dos EUA, e do que chamam de um necessário “acerto de contas com o passado”, “Como Salvar a Democracia” traz lições aplicáveis em outras partes do mundo ameaçadas por populistas, à direita e à esquerda, hábeis em explorar, com propostas extremistas, o descontentamento de segmentos da população com a perda de status político e social.
O livro enfatiza a necessidade, para consolidar a democracia, de aceitar a alternância de poder, rejeitar o recurso à violência e agir rapidamente para isolar os extremistas. Alerta, porém, para o perigo de repressão pura e simples da oposição, a pretexto de punir os inimigos da democracia, como no macarthismo dos EUA ou nas perseguições a grupos de esquerda na América Latina durante a Guerra Fria.
Particularmente instrutiva é a discussão, detalhada no livro, sobre o difícil balanço entre garantir que o governo obedeça a vontade da maioria e proteger os direitos individuais e das minorias na sociedade.
Evitar uma “ditadura das maiorias” é um objetivo meritório, mas, alertam, no passado e até hoje, há inúmeros episódios em que, a pretexto de evitar esse problema, elites políticas e oportunistas criam mecanismos que permitem a grupos minoritários agir em proveito próprio contra o interesse mais amplo da sociedade.
Como na obra em que falavam do risco de morte das democracias, o livro mais recente de Levitsky e Ziblatt é uma boa compilação de exemplos de sintomas de deterioração do ambiente democrático - hoje em dia apoiada, até pacificamente, em omissões ou ambiguidades da lei.
Os autores confessam que foram incapazes de prever o alcance do extremismo liderado por Donald Trump. Em “Como Salvar a Democracia”, com abundância de exemplos e argumentos, mostram como é fundamental, para preservar o ambiente democrático, um empenho urgente contra a proliferação de casos semelhantes.
A Argentina de Javier Milei está aí, para mostrar que a todo momento surge um motivo para esse esforço.
Serviço:
Como Salvar a Democracia
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
320 páginas
R$ 79,00
Zahar